ABRUPTO

7.3.05


BIBLIOFILIA: NÃO HÁ LIVROS PACÍFICOS

Este parece um normal livro sobre campismo, mas as actividades de “ar livre” foram fomentadas e popularizadas em Portugal pelos comunistas e pela oposição que lhe era próxima. Militantes como Joaquim Campino tiveram papel destacado na história associativa do campismo, e os acampamentos eram um local privilegiado para realizar encontros políticos clandestinos.

Este volume da célebre Biblioteca Cosmos, organizada por Bento de Jesus Caraça, é um exemplo dessa influência. Escrito por Mário Mendes de Moura, estudante de agronomia, depois engenheiro, militante do MUDJ, membro da sua Comissão Central, preso em 1948, posteriormente exilado na Venezuela e no Brasil, e actualmente editor, não escondia no seu prefácio a sua preocupação com os “trabalhadores”. O mesmo tipo de interesses era partilhado pelo ilustrador Daniel Morais, ele próprio também membro do MUDJ e preso na mesma altura de Mário Moura, cujas ilustrações “citam” a linguagem gráfica das publicações comunistas.

(Nota mais detalhada sobre o campismo e a oposição está nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.)

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VASCO GRAÇA MOURA: EX-LIBRIS



(apresentação para um livro de depoimentos sobre livros que ainda não saiu e não sei se chegará a sair...)

Em 28 de Agosto de 1819, Keats escrevia a sua irmã Fanny, “dêem-me livros, fruta, vinho francês e bom tempo e uma musiquinha lá fora, tocada por alguém que eu não conheça”... Francamente, eu prefiro este princípio de prazer, ligado ao trato com os livros, a uma série de profundas considerações sobre a sua importância e utilidade, ou à especulação sobre o livro como símbolo onde se inscreve a imagem do mundo, que, da Bíblia a Jorge Luís Borges, passando por Ernst Robert Curtius, determina muita da nossa ontologia na matéria. Que têm a sua importância, sim, mas nós não temos de passar a vida a fazer congeminações simbólicas.
Dêem-me livros, ameixas pretas secas, um vinhito português (do Douro, claro!) e uma musiquinha. Não estou preocupado com o tempo que faz e na música há muitas opções aceitáveis para o meu hedonismo egoísta e concentrado quando pego num livro. Mas é bom que haja uma poltrona para quem lê se espolinhar devidamente. E, no Inverno, uma boa lareira. E, na cama, uma boa almofada e um bom candeeiro.

Há também outros prazeres, tácteis em certas encadernações e qualidades encorpadas das folhas e em certos livros, sobretudo antigos, impressos em papel de linho, cujas páginas parecem crepitar ao serem percorridas nos bordos do corte com um toque do polegar; visuais, ligados ao formato, ao aspecto, à tipografia, à mise-en-page, à ilustração; enfim, intelectuais ligados ao que se tem debaixo dos olhos, a esse pastar da vista, sôfrego ou tranquilo, envolvido ou reflexivo.
Porque não há receitas para pegar num livro ou para amar um livro. Há vícios bem-aventurados. Ler é um deles. Outro, afim, é o dos livros, enquanto livros, daqueles objectos paralelipipédicos que se encostam uns aos outros na estante e começam logo por dar o prazer de serem muitos e ordenáveis de muitas e desvairadas formas, o dos livros como matéria de forro do espaço doméstico, o dos livros que vemos em casa dos amigos, o dos livros como objectos que se encontram nos lugares de peregrinação que são as livrarias e as bibliotecas, o dos livros que se leram de uma assentada, o dos livros que se fecharam para serem retomados mais tarde, até o dos livros que se esqueceram, até o dos livros que são mostrados em revistas de livros ou de decoração, nestas, quando calha haver uma secção dedicada a bibliotecas, sem falar no dos livros que recomendamos e que oferecemos, no dos que lemos nos transportes públicos, e assim por diante.

Há mais um prazer, só possível para quem alguma vez foi editor, embora arremedável por quem adquira um livro para levar para casa: o do exercício do jus primae noctis, o da primeira noite que se passa deitado e deleitado com o primeiro exemplar de um livro acabado de chegar da tipografia...

Já uma vez escrevi, no boletim de informação bibliográfica da Oiro do Dia (e o texto também vai agora arquivado neste conjunto), sobre Aby Warburg, o erudito alemão, fundador da Iconologia como disciplina histórica e interpretativa, que, em finais do século XIX, sendo primogénito de uma família de banqueiros judeus, renunciou à primogenitura por contrato com os irmãos, que ficaram com a administração do banco e se obrigaram a comprar-lhe todos os livros que ele quisesse ao longo da vida. E às vezes, dou comigo a pensar porque é que o meu pai não foi banqueiro, para eu poder saciar a minha fome de livros e para os meus irmãos acabarem a perceber que afinal não teriam feito propriamente um negócio da China com tão volumoso prato de lentilhas... (Era de Warburg a "lei da boa vizinhança" - Gesetz der guten Nachbarkeit - que pode enunciar-se assim: o livro de que precisas não é aquele de que andas à procura, mas sim o que está ao lado dele na estante).

Não, ai de mim, a minha relação com os livros na perspectiva da aquisição deles não tem nada de “warburgiano”: começou ainda no tempo dos calções curtos, comigo a juntar moedas de vinte e cinco tostões da semanada para comprar este ou aquele volume que ia aparecendo no Jomar da Foz, ali à entrada da Rua da Senhora da Luz, a preços entre os dez e os quinze escudos. Antes, era a razoável biblioteca familiar, o ar pausadamente entretido da minha mãe a abrir as folhas de algum volume que chegava, o que ela gostava muito de fazer e eu detesto, e sobretudo o forte estímulo paterno, que me atraía para eles e que muitas vezes citava o Castilho: “há livros que, semelhantes a barquinhas milagrosas, vogando no oceano das ideias”... Nunca tive grande paciência para o Castilho, salvo nas análises sobre “estilo e preconceito” do Fernando Venâncio. Nunca encontrei (nem procurei) a página em que ele diz isso e que, se estou bem lembrado, começava enfaticamente: “A leitura, meus amigos, sabeis vós bem o que é a leitura?...”. Mas devo-lhe, através do meu pai, essa síntese metafórica do livro como barca milagrosa que me tem acompanhado e em que tenho vogado e vagado ao longo da vida. Eram também noites inteiras de leitura devoradora, por vezes clandestina, para que não se pensasse haver prejuízo no levantar cedo para ir para o colégio. Era o que não se percebia à primeira no que se lia, mas depois acabava por se perceber.

O grande problema da minha relação com os livros é o da vertigem de tudo o que nunca li. Não o de tudo o que nunca chegarei a ler, hélas!. Mas o daquilo que sei que ainda hei-de ler e continua a ser uma compulsão, talvez a verdadeira utopia dos amanhãs que cantam na palavra escrita dos livros.

Este volume recolhe textos de índole muito diversa, alguns de autêntica "poética do livro" (por exemplo, Albano Martins, Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Rebordão Navarro), outros mais preocupados com a sua importância para o desenvolvimento do ser humano e das sociedades (por exemplo, Álvaro Cunhal), outros pondo a tónica no testemunho autobiográfico de uma relação com o livro estruturada desde a infância e para toda a vida (por exemplo, Eugénio Lisboa, João Bigotte Chorão, Miguel Veiga, Maria Alzira Seixo), outros dando conta de deambulações, fascinações, vagabundagens e achamentos por alfarrabistas e livreiros, bibliotecas, catálogos e repertórios bibliográficos (por exemplo, Armando Castro, Cunha Freitas, Jacinto Baptista, Rúben de Carvalho, José-Augusto França). Em quase todos, a relação pessoal com o livro, não apenas intelectual, mas também táctil, visual, afectiva, doméstica, terna, poética e até irónica, emaranha-se, organizando um labirinto de percursos que acaba por reconduzir-nos ao arquétipo da biblioteca e um caleidoscópio de impressões que encontra homologia com um célebre filme de Chris Marker sobre Toute la mémoire du monde.
A este conjunto valeria a pena agregar, quanto mais não fosse para fins de contraposição, o soneto um tanto ou quanto pessimista que o venerável António Ferreira escrevia em 1557 e que veio depois a ser incluído por seu filho Miguel Ferreira, em 1598, como primeiro texto dos Poemas Lusitanos:

Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t'impece, a ninguém danas!

Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.

Ah! não te posso ter! deixa ir cumprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.

Dirás que a pesar meu foste fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.


Enfim, com tanta variedade de testemunhos como a que se encerra neste livro “sobre os livros”, creio que neles se abordam muitas coisas que eu deixo por abordar para evitar repetições ou até, aqui e ali, dessintonias. Com certeza que há, em muitas outras páginas, um semelhante comprimento de onda. É interessante e importante que os escritores falem sobre a sua relação com os livros que não escreveram, mas que em grande medida determinaram o que eles são. Porque nunca não há nada de verdadeiramente novo, a não ser nos livros que continuam a ler-nos por dentro.

Vasco Graça Moura

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INTENDÊNCIA

Novas actualizações na nota OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA.

Actualizado os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.

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OUVINDO "O BEIJO E OUTROS MOVIMENTOS"

e
Michael Nyman, The Kiss & Other Movements e as 11 Sonatas para Piano de Haydn por Brendel.

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MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (5ª série)


Anónimo do século XVII

Não era verdadeiramente uma biblioteca. Era uma parte de casa com ramificações para um sótão onde se amontoavam milhares de livros, revistas, recortes de jornais numa despreocupada desordem sempre justificada pela necessidade de os "ter à mão". A família, sobretudo a minha avó, referia-se aquele local labiríntico como a "ilha", num misto de desdém e de inquietação pelo pó e desarrumação que lá adivinhava. É que ninguém estava autorizado a lá entrar. A não ser eu, a neta mais velha, quando vinham as férias. Cedo tive consciência de que este privilégio para além de representar uma "deferência" especial para com a minha "pessoa" era um caminho, uma passagem, que me transportava para a um outro mundo de dimensões mágicas insuspeitas no resto da casa. Teria 5, 6 anos mas jamais esquecerei as longas horas de puro prazer a observar a intimidade e o infinito cuidado com que meu avô manuseava os livros, a maioria já muito gastos e amarelecidos, e a ouvir as maravilhosa histórias de fadas e duendes que povoaram a minha infância. Guardo com profunda emoção e saudade cada um desses momentos.

(GC)

*

Os livros e jornais estão nas minhas memórias mais antigas. Vivia numa aldeia da Beira Baixa (como se designava antes de nomenclaturas mais "a moda") e lembro-me de me deixarem brincar com uma encadernação de jornais franceses, provindos de um tio avô, com ilustrações, e de ter tido uma fixação deslumbrada e um pouco arrepiada do “Radeau de la Méduse” do Géricault, que retenho ainda hoje na memória, naquele desbotado preto e branco próprio de papel de jornal, e que me conduziu muitos anos mais tarde ao Louvre, para quase me deixar esmagar pela dramática jangada, em tamanho “plus que nature”…

O meu Pai era professor primário e teve desde sempre uma relação com a leitura, ao mesmo tempo profunda, séria e cheia de prazer. Naquele fim de mundo, usava um processo de se manter actualizado, de que vim a reconhecer a dimensão quando ficaram nas minhas mãos as suas infindáveis estantes: mantinha assinaturas de edições por fascículos, que julgo ser hoje um processo em desuso (adoptado e adaptado pela publicação de colecções dos jornais?). Mas lembro-me bem de chegarem regularmente no correio esses fascículos – o Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa de Artur Bívar (desafio qualquer pessoa a procurar uma palavra que lá não encontre…), A Volta ao Mundo do Ferreira de Castro, os da colecção Cosmos, tantos outros. Vim a encontrar um “atado” com fascículos não encadernados, ainda nos seus sobrescritos de correio, com o selo “caravela” de $10 (nem sei como designar este valor - um tostão?…) da edição da Enciclopédia Pedagógica Progredior , fundada pelo Professor Adolfo Lima e publicada pela Livraria Escolar Progredior, do Porto .

E desde antes da escola, os meus livros pessoais - a Alice no País das Maravilhas (que , naturalmente , não acompanhei nas suas deambulações, mas de que muito me seduziam as gravuras) os Contos de António Botto, e mais tarde os da Colecção Azul, e mais, mais tarde, tardes inteiras fechada a percorrer a Enciclopédia Luso Brasileira, até cansar, por caminhos em rede, de um para outro vocábulo, cheios de informação que não me convinha buscar em conversa. ..

E não resisto a trazer aqui também a magia da Biblioteca Nacional, na Rua Ivens, que comecei a frequentar ainda no liceu, para escolher peças de teatro do Camilo para a récita dos finalistas. E aí foi só o começo, porque todo o tempo da Faculdade (de Letras) para lá caminhei no eléctrico 28, mergulhando horas e horas. Mas o que eu queria evocar era aquela figura memorável, que me penitencio por não me lembrar do nome dele, que nos dava acesso às cotas dos livros. Estarei confusa? Mas a minha ideia é que nós não mexíamos nas fichas, manuscritas com aparo, numa ortografia elegantíssima, arrumadas numas caixas de madeira marcada pelo uso, com as fichas num estado vetusto, dobradas, vergadas pelo uso das décadas. Como se chamava esse senhor de cabelos brancos que, afinal, nem precisava de manusear as fichas, porque sabia as cotas todas de cor?

Bem podia desfiar ainda tantas memórias dos próprios livros, lugares das melhores viagens pela condição humana, pelos tempos, pelos lugares mais longe e até, também os de perto. Quem neste mundo pode responder com honestidade à pergunta sobre o livro da sua vida?

Maria José Martins


*

Obrigada por me ter dado a ver a sala de leitura da Biblioteca Municipal do Porto. Não a via há 45 anos. Foi praticamente lá que me fiz leitora. Era, então, estudante do Liceu Rainha Santa Isabel (na transição do velho palacete para o novo edifício). Ia de Ovar para o Porto, diariamente, e a Biblioteca era aminha sala de espera pela hora do comboio. Lembro o frio, mas também o sol que à tarde batia nas janelas (era desse lado que costumava ficar, mas também cheguei a estar na área reservada pelo grosso cordão vermelho - amabilidade do funcionário, quando as mesas do lado de cá estavam totalmente ocupadas). Aí li muito Garrett, muito Herculano, muito Camilo, todo o Júlio Dinis, muito Eça. Hoje sou professora de Português.

(N. Maria Graça)

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EARLY MORNING BLOGS 444

Requiescat


Direi, pela noite, não ódio que tivesse
Nem detestar vida corpórea e ninhos de manha,
Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá
Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha.

Direi --- não "fora!" ao mundo que me cinge
(Outro onde o sei e como chegaria?),
Mas dos anos de ver, pensar durando
Retiro uma moeda de nada,
Fruto do meu suor, e pago o pão que se me deve,
Compro o silêncio que se me deve
Por ter cumprido a palavra,
Trabalhado nas palavras,
E por elas merecido a terra leve.


(Vitorino Nemésio)

*

Bom dia!

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6.3.05


INTENDÊNCIA

Actualizada a nota OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA

Em breve serão feitas as colocações de novos textos da série A Lagartixa e o Jacaré no VERITAS FILIA TEMPORIS. Um dos textos, publicado há duas semanas, inclui este fragmento, que queria lembrar aqui à luz da ridícula história do retrato de Freitas do Amaral enviado pelo correio ao PS, verdadeira "garotice" como foi classificado e bem.

BLOCO DE ESQUERDA E PP

são partidos muito mais parecidos do que alguma vez queiram admitir. São miméticos no seu ódio recíproco, como só os pequenos partidos podem odiar-se entre si na sua couraça de radicalidade. Tem ambos dirigentes muito semelhantes: o que é que há de mais parecido a Portas do que Louça e vice-versa? Ambos moralistas, self-righteous até dizer chega, não conseguem abrir a boca sem nos dar uma lição do que se deve ou não deve fazer. Ambos politicamente correctos um na sua missa, outro no seu ocasional e admitido charro, um no seu fato, outro na sua camisa, ambos usando o que vestem como uma farda de serviço, uma extensão do seu manifesto político.
Nestas eleições o BE ganhou ao PP, subiu onde ele desceu, também porque Louça é mais genuíno do que Portas. Portas não consegue esconder a agressividade, que nele assume a forma de arrogância, da pose. Querendo ser inglês, mordaz e cínico, anarco-conservador como vem nos livros e no Spectator, falta-lhe o estofo e o saber, e acaba por ser ultra-montano e beato, e ávido de uma realpolitik no fundo paroquial e provinciana. Louça é o que é há muito tempo, tem muito treino, é um ideólogo frio e capaz, tem o mundo completamente encaixado, sem uma dúvida, auxiliado por uma maior cultura e cosmopolitismo. A sua arrogância, parecida com a de Portas, manifesta-se pelo verbo, mas é menos susceptível de soçobrar no ridículo, até porque protegida por uma comunicação social simpatizante.
Depois o Portugal de Louça cresce e o de Portas encolhe. Os jovens radicais urbanos bem nascidos hão-de sempre ser mais do lado do Bloco, porque o politicamente correcto é a ideologia do nosso ensino, e só uma pequena minoria, não muito diferente na origem social mas de famílias diferentes, engrossa os admiradores do PP. Quem podia fazer crescer o PP, os empresários e a “cultura da iniciativa” desconfiam do radicalismo de Portas e preferem outros, Sócrates neste caso.

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MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (4ª série)


Hercules Segers

Tive o privilégio de ter nascido e vivido, sempre rodeada de livros. Na minha família acreditava-se no poder e valor da leitura. Desde cedo me tornei uma leitora insaciável: quando visitava as casas de amigas, elas, antes de eu chegar, fechavam os seus livros à chave para que não me pudesse enfronhar neles e afastar-me das brincadeiras que se queriam generalizadas. Apesar de, numa primeira fase, a biblioteca dos meus pais não ser muito grande, a do meu avô – aberta à minha exploração – era interminável. Ou, pelo menos, assim me parecia. A ela recorria quando tinha de estudar, a ela recorri quando quis ler Stephan Zweig, Júlio Verne ou os franceses da viragem do século. Foi lá também que li os números do ABCzinho e descobri as aventuras do Cavaleiro Andante.

Chegada ao Liceu D. Felipa de Lencastre, descobri a biblioteca (tão pouco frequentada no início dos anos 70!) e Júlio Dinis, Eça de Queirós ou Wenceslau de Morais. Cheguei a estar horas sozinha sentada entre as estantes fechadas que uma funcionária abria para retirar os tesouros que ajudaram à minha formação, que acompanharam a minha fantasia e esquecer-me das horas de voltar para as aulas…

Fui para a faculdade e continuei a ler. Não surpreendentemente escolhi Línguas e Literaturas Modernas e, mais tarde, por imperativos de carreira, corri muitas e muitas bibliotecas, da Casa do Infante ao Arquivo Histórico da Educação, da Biblioteca Municipal do Porto (sim, também passei por lá!) às várias Bibliotecas Nacionais ou à biblioteca de Évora, Braga ou Lagos. O perigo que era ir para a biblioteca da Gulbenkian! Aquela janela, os sofás confortáveis, os livros fascinantes… Quem é que nos tirava dali? Bibliotecas tão diferentes entre si, mas todas elas homenagens ao gosto e ao prazer da leitura. Todas elas espaços de convívio com esse ser misterioso que é o livro antes de ser aberto.

Sinto-me bem entre livros. São companheiros, professores amigos. Gosto do seu cheiro quando são velhos, da textura do papel, do grafismo das capas. Como mãe, esforcei-me sempre para que as minhas filhas ganhassem o amor pela leitura, como professora tentei encorajar os meus alunos a lerem para lá do que os curricula obrigavam, como leitora continuo a ler e a procurar que mais gente o faça.

Nunca consegui deitar um livro fora: acho um crime. E agora, que os 15.000 volumes da minha primeira biblioteca, a biblioteca do meu avô, me vieram ter à mão, é com muito prazer e carinho que dou seguimento ao que foi a sua vontade: oferecê-la à Junta de Freguesia da terra onde morava. Para que mais gente possa ter o prazer de descobrir mais uma biblioteca. Para que, daqui a uns anos, num outro blog qualquer, haja gente que continua a escrever sobre o prazer que é entrar numa biblioteca para descobrir o que os livros têm para lhes dizer…

(MJA)

*

Há momentos únicos nas nossas vidas. Por isso, também eu gostaria de falar de uma biblioteca. A minha primeira biblioteca. Diferente. Sem claustros, lareiras ou jardins, mas com rodas. Igualmente digna, a minha primeira biblioteca. Chegava uma vez por mês, lá pelos finais de 60 e início dos 70.
Ainda hoje não consigo decifrar a magia que levava um significativo número de miúdos de uma aldeia dos arredores de Viseu, a percorrer cinco ou seis quilómetros, a pé, para ir trocar os livros que no mês anterior tinham requisitado. Sei apenas que, para muitos, essa foi a semente que fez nascer o gosto e o amor pelo livro e pela magia da leitura. É engraçado que muitos anos e muitas Bibliotecas depois, continuam claramente presentes na minha memória as pequenas estantes apinhadas de livros de aventuras e de mundos desconhecidos.A velha carrinha Citroën (acho que eram dessa marca) deve agora enferrujar no fundo de algum silvado. Fica, no entanto, um perene reconhecimento à Fundação Gulbenkian e ao saudoso David Mourão Ferreira por terem permitido a muitos miúdos olhar para dentro de um livro.

(D.S.)

*

Os "apanhados" transcritos no seu Abrupto sobre o amor aos livros de tanta gente, comoveram-me até às lágrimas e fizeram-me pensar.
Da verdadeira dimensão da leitura e da humanidade jacente na história que nos contam, na ideia que transmitem, na possibilidade de parar para pensar, voltar atrás e reflectir.
Só nós e o livro.
Em todas as mensagens existia ternura e instrospecção e todas reflectiam uma paz interior dos seus autores dada, julgo que indiscutívelmente, pelo facto de serem...leitores interessados.

(MGC)

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Com onze anos morava em Vale de Santarém. Curso Comercial só em Lisboa para onde viajava de comboio diariamente.

Comecei pela Escola Eugénio dos Santos em Alvalade e, quando me mostraram a Biblioteca Municipal do Palácio Galveias, fui frequentador habitual durante dois anos. Voltei anos depois para confirmar que o fascínio do ambiente novo e a visão de estantes altíssimas cheias de mistérios, me marcou para sempre.

Por uma porta que lá um dia se entreabriu, consegui ver num relance, outras estantes em corredores obscuros onde, de umas prateleiras para as outras, os livros decerto conversavam entre si.

Frequentei depois a Escola Veiga Beirão no Carmo e, muito perto dali, na rua Ivens, tínhamos a Biblioteca Pública, agora extinta. Pedia para ler o que via pelas montras: Muito Júlio Verne misturado com O Crime do Padre Amaro; o Fel de José Duro e algumas biografias (de Edison, Napoleão, Toulouse-Lautrec...), entremeados com o Amor de Perdição e o Camões dos Sonetos. Aí bebi também as Prosas Bárbaras, e as Lendas e Narrativas bem como o Eurico.

Fui mesmo a tempo de ler na altura certa os clássicos juvenis: Mark Twain, Stevenson, Salgari, Dickens... Mas a verdadeira revelação foi para mim a Biblioteca Nacional, onde ela era e foi: no largo a seguir à rua Ivens logo antes da Victor Cordon: A sala de leitura vasta para os meus olhos, a frequência quase nula, e a toda a volta Enciclopédias e dicionários. Lá me perdi com a Larousse do sec. XIX e a do sec. XX, com a Britânica e o seu extraordinário volume de Atlas. E não me cansei a folhear a Universal (creio que era argentina). Lembro-me também de uma outra, alemã, uma obra em dezenas de volumes de uma grande perfeição tipográfica. Muitas das ilustrações, eram estampas em extra-texto, coladas pelo topo no espaço em branco reservado na página. Dava gosto procurar Lisboa e encontrar “Lissabon”, ou “Portugal” ... Pela primeira vez vi a sanha do vandalismo:
muitas dessas ilustrações, (fotografias, desenhos, reprodução de quadros...) tinham sido arrancadas, e muitas das páginas de suporte estavam danificadas.

Saíamos dali cientes de que o mundo era vasto e que era preciso aprender italiano, alemão ou geometria. No entanto, o mais extraordinário era o enorme móvel de ficheiros ao fundo da sala onde centenas (?) de gavetas mostravam nas fichas, os títulos com algarismos elevados (p.ex. xxxxxxxx
xxx12 ), o que queria dizer que aquele titulo se encontrava em 12º lugar no identificado volume Miscelânea. Os volumes de Miscelâneas eram (são) encadernações de materiais heterogéneos: Buscando um título encontrávamos os mais incríveis assuntos: a separata de uma revista, o catálogo de uma exposição, um discurso, um estudo de criptografia, uma tese...

Desde então, nas bibliotecas desencanto minutos para encontrar o inesperado e apreciar a surpresa possível.

(M.Neves Mendes)

*

Recordo as carrinhas da Fundação, que só eram cinzentas na cor, que nos apareciam de vez em quando junto à Escola Primária ou no Parque junto ao rio, em Vila Praia de Âncora. E aí havia "festa na aldeia". Sonhava, não sei se de sonho sonhado ou acordado, que entrava nessas cabanas de quatro rodas e levava todos os livros para casa...Hergé, Conan Doyle, Verne como dieta inicial. Ainda hoje dou comigo, quase com inconsciência, encostado às montras das livrarias a contar aqueles que levaria para o aconchego do lar. Definitivamente, os sonhos podem levar ao crime.

(António Filipe Meira)

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Memórias de Bibliotecas / Memórias de uma menina bem-comportada...

Muito acertadinha, subia duas vezes por semana a rua onde vivia para ir ter aulas particulares de piano no Colégio da Paz, perto do Marquês, no Porto. Naquele tempo, e não foi há tanto assim, ia sozinha, aprendendo a saborear aqueles quinze minutos de independência valiosíssimos para os meus sete ou oito anos de idade. Não me lembro de sentir perigo algum, nem de haver muito trânsito nas ruas, nem de transeuntes ameaçadores, nem mesmo que chovesse ou fizesse muito frio (algo de muito improvável no Porto, o que prova quão selectiva é a nossa memória...): eu lá ia depois do almoço, com a pasta das pautas debaixo do braço. Sentia-me abrigada entre dois portos seguros, o de minha casa e o da pesada porta do Colégio da Paz, que se abria para um convidativo e amplo átrio interior. Acabada a meia hora de aula de piano, havia sempre um sorriso benévolo e meigo de despedida no rosto da freirinha que estivesse à porta. E eu gostava desse ritual, do caminho de ida e volta que se me afigurava longo e interessante. Foi assim que me fui habituando a observar o semblante dos rostos das pessoas por quem passava, a pisar as folhas castanhas e caídas trazidas pelo vento de Outono, a tentar responder por mim às perguntas que iam surgindo a cada nova descoberta. Mas a melhor descoberta de todas foi feita num dia de desacerto de rotina, quando (já não sei por que razão), ao sair do Colégio, virei à esquerda em vez de virar à direita, como era costume, e dei por mim a atravessar o Jardim do Marquês para ir conhecer a pequena biblioteca que lá existia. Lembro-me do edifício, pequeno, claro e envidraçado. Lembro-me de haver mesas e bancos cá fora onde velhos jogavam às cartas e ao dominó. Lembro-me das folhas caídas no chão de Outono, que eu pisava num ritmo de dança só meu e que, ainda hoje, volvidos trinta anos, continuo a ensaiar cada vez que sinto folhas secas debaixo dos pés. Lembro-me, sobretudo, dos livros. Não deviam ser muitos, pois tratava-se de uma pequena biblioteca. Mas um local com livros sempre exerceu em mim um sortilégio especial. E aquele ficava num jardim lindíssimo, com altas e frondosas árvores. Para uma menina que crescia numa cidade, havia algo de mágico naquela casinha rodeada de árvores e arbustos. Nessa primeira tarde, não entrei. Cautelosa como sempre fui, limitei-me a observar de longe. Dois dias depois, voltei. Dessa vez, não consegui conter a minha curiosidade. Entrei, olhei em volta e não consegui resistir. Já não me lembro se algum funcionário que lá estivesse falou comigo, ou se eu me dirigi a alguém. Sei, sim, que foi ali que, a partir daquele momento, li muitos "livros aos quadradinhos", como eu lhes chamava. Como era bom poder rir com as aventuras de Tintim e as façanhas do Astérix depois de exercícios de escalas, solfejo e pequenas peças para piano orientadas por uma professora competente, porém um pouco austera. Se alguma vez cheguei a casa mais tarde do que a hora prevista, nunca ninguém fez qualquer reparo. Não por desleixo, decerto. A minha conduta bem-comportada havia-me granjeado alguma liberdade...

Estudei piano durante doze anos. Aquela foi a minha rotina durante todo esse tempo, pautada pelas inevitáveis mudanças: o caminho a pé feito a pensar nos meus dilemas de adolescente, a descoberta de uma Barcarola de Mendelssohn ou a euforia sentida por conseguir tocar uma valsa de Chopin. Nessa altura, já a biblioteca do Marquês fazia parte da minha memória de infância, a paixão pelos livros e pela Literatura estava bem enraizada em mim... Às vezes, ia até ao jardim para ter a certeza que a biblioteca ali permanecia, com as árvores e os velhos à sua volta. Parecia querer fotografar aquela imagem na minha memória...

Hoje, sei que quando voltar ao Marquês, não mais verei o que se mantém gravado na minha memória. Tenho evitado passar por lá. Quando o fizer, será provavelmente de metro, e, provavelmente, estarei a ler um livro ou a folhear um jornal. Ou, se me lembrar, procurarei ler o poema que estiver escrito no interior da carruagem. Pode ser que seja sobre música ou árvores, ou folhas de Outono. Se assim for, esboçarei um sorriso...

(Marta Correia)

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5.3.05


A CAMINHO

"A boca de um vulcão. Sim, boca; e língua de lava. Um corpo, um monstruoso corpo com vida, macho e fêmea ao mesmo tempo. expele, ejecta. É também um interior, um abismo. Uma coisa viva, que pode morrer. Algo inerte que de vez em quando se agita. Que apenas existe de modo intermitente. Uma ameaça permanente. Ainda que previsível, geralmente imprevista. Caprichosa, insubmissa, malcheirosa. (...).
Claro que o podemos ver como um grande fogo-de-artifício. É tudo uma questão de meios. Vê-lo de bastante longe. Há belezas que são para admirar apenas de longe, diz o dr. Johnson; não há espectáculo mais grandioso qaue o das chamas. A prudente distância, é o espectáculo supremo, tão instrutivo quanto emocionante. Depois de um repasto na villa de Sir***, vamos para o terraço, armados de telescópios, para observar. Um penacho de fumo branco, o ressoar tantas vezes comparado ao rolar distante dos timbales: abertura. E começa então o colossal espectáculo, o penacho inflama-se, intumesce, eleva-se, uma árvore de cinza que sobe cada vez mais alto até se achatar sob o peso da estratosfera (com alguma sorte veremos como que sulcos de esqui laranja e rubros correr pela encosta abaixo) - horas, dias disto. Depois, calando, acalma. Mas de perto, o medo convulsiona as tripas. Este ruído, um ruído abafado, é uma coisa que nunca poderíamos imaginar, impossível de conceber. Um contínuo fluir de um som áspero, de um estrondear titânico que parece estar sempre a aumentar de volume e no entanto é impossível ser mais ruidoso do que já é; um vómito fragoroso e ensurdecedor que enche o espaço, que nos deixa sem pinga de sangue e nos revira a alma. Mesmo os que se consideram apenas espectadores não conseguem furtar-se à investida de aversão e terror, nunca antes experimentado. Numa aldeia no sopé da montanha - poderemos aventurar-nos até lá -, o que de longe parecia um caudal torrencial revela-se a massa rastejante de escórias viscosas pretas e vermelhas, paredes tenteantes que se sustêm ainda um momento para logo cederem trementes aspiradas com um plop pela frente dessa lama palpitante; forçando, aspirando, devorando, deslassando os átomos das casas, dos carros, vagões, árvores, umas a seguir às outras. É então isto o inexorável.
"

Susan Sontag, O Amante do Vulcão, Lisboa, Quetzal Editores, 1998.

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OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA


La lontananza nostalgica utopica futura, Madrigale per più “caminantes” con Gidon Kremer.

*
Grandes nomes/títulos e grandes obras musicais. O último ciclo de obras de Nono foram motivados por uma inscrição visto pelo compositor numa parede de Toledo, "Caminantes, no hay caminos, hay que caminar", na qual surpreendentemente o compositor não reconheceu o conhecido mote de Antonio Machado, poeta que todavia já tinha abordado em música. O título completo da primeira desta obra é "La lontaneza utopica futura, Madrigale per piú 'caminantes'" e do ciclo fazem parte ainda "Caminantes...Ayacucho" e "No hay caminos hay que caminar ... Andrei Tarkovski", derradeira obra de Nono. Se nestas obras o compositor retomou a errância do Wanderer de Nieztche, toda a sua fase final da sua obra, de alguém que foi também o autor mais politicamente comprometido da geração da "vanguarda" e membro do Comité Central do PC Italiano, sempre muito crítico do sistema soviético, toda essa final é atravessada pelo horizonte do silêncio mas também, creio, por um diálogo com o Anjo da História de Benjamin; daí também "La lontananza nostalgica utopica futura". Outros grandes títulos são "À Pierre, del azurro silenzio, inquietum", dedicado a Pierre Boulez, e o mais importante de todos, a obra crucial da última poética de Nono, "Prometeo, la tragedia dell'ascolto".

(Augusto M. Seabra)

*
Há falhas no texto de Augusto M. Seabra que publicou:

1) O título completo da obra é la lontananza nostalgica utopica futura, madrigale per piú caminantes con Gidon Kremer. Ou seja, lontananza e não lontaneza, e falta a A.M.S. as palavras nostalgica e ainda con Gidon Kremer
2) No conjunto de obras mencionadas por A.M.S., falta «Hay que caminar» soñando, para dois violinos, 55ª obra do catálogo do Nono, composta em 1989
3) essa sim, a última obra terminada por Nono, e não No hay caminos, hay que caminar (obra de 1987 e 52ª do catálogo), como afirmou A.M.S.

De um ponto de vista meramente pessoal, permita-me que lhe recomende ...sofferte onde serene... (36ª obra, piano e banda magnética, 1974-1976) bem como Quando stanno morendo, diario polacco nº 2 (41ª obra, 1982).

Permita-me ainda que lhe recomende algo para engordar a sua bibliofilia: Luigi Nono - Écrits, Christian Bourgois Editeur (livro no qual poderá fazer um fact check das correcções que apontei)
(César de Oliveira)

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MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (3ª série)


Arcimboldo

Nasci e cresci numa casa de cujo jardim se avistavam as palmeiras do jardim traseiro da Biblioteca [Pública Municipal do Porto]. A casa lá permanece (a minha mãe ainda lá vive) mas a maior parte das árvores imponentes já não existe, o jardim foi destruído há já alguns anos sob um pretexto qualquer. Também frequentei com muita assiduidade a sala de leitura e lembro-me bem do professor Cruz Malpique lá sentado, rodeado de livros e de fichas. Embora nunca tivesse sido sua aluna, também o conhecia bem do Alexandre Herculano, onde era uma das vinte ou trinta "meninas" destinadas às Letras e ao Direito, que por lá passaram no fim dos anos cinquenta por falta de espaço nos liceus femininos.
Cedo adquiri o hábito de ir para lá estudar ou requisitar livros para leitura domiciliária, pois o hábito manteve-se depois do fim do liceu, quando já era estudante em Coimbra.

Os claustros que era preciso contornar, ventosos e gelados no Inverno e frescos no Verão, onde se esquecia o barulho da rua e só se ouvia o arrulhar dos pombos, antes de se ganhar o acesso por uma escada de pedra de degraus muito gastos. A sala de leitura, como é retratada na fotografia enviada , era à direita, ao cimo das escadas, à esquerda ficava o mistério dos arquivos, onde os funcionários por vezes se deslocavam à procura dos livros.

(Maria Emília Malta)

*

Como tive a sorte de nascer numa casa cheia de livros - os meus pais derretiam as poupanças de empregados de escritório nos alfarrabistas -, só no então Liceu Normal de Pedro Nunes tive oportunidade de viver a aventura de explorar uma biblioteca bem organizada.
E tive outra sorte, quando isto aconteceu, que foi a de a referida biblioteca ser dirigida pelo prof. Rómulo de Carvalho, que nos fazia o favor de ser na sua outra vida, como sabe, o António Gedeão. Muito antipático, nas aulas, nos intervalos, na direcção de ciclo e nos cruzamentos com alunos no Jardim da Estrela, perfeitamente integrado na disciplina vigente do come e cala, magister dixit, o poeta-profe era outro, dentro da biblioteca do Pedro Nunes, mesmo que mantivesse vestida a ameaçadora bata branca das fisico-químicas: afável, solícito, quase amigo. Deixava as preocupações do regime a cargo da sinistra D. Teresa, a contínua-vigilante, e mergulhava nos livros.
Ao longo dos três anos em que contactámos, orientou as minhas leituras com esperteza e sensibilidade, apresentou-me a ficção científica, que substituiu os Cinco e o Verne, e até "discutiu" comigo O Mundo dos Outros do José Gomes Ferreira, que foi meu livro de cabeceira num ano qualquer da adolescência.
Dentro da biblioteca, só regressou à sua concha de professor metodólogo do sistema educativo da ditadura em duas ocasiões: uma, quando eu, espertinho, tentei requisitar a Dolicocéfala Loira de Pitigrilli, que os meus pais, em casa, tinham retirado da circulação ("Tenha juízo e ponha-se lá fora"); outra, quando Manuel Freire cantou no Zip Zip a "Pedra Filosofal" e eu, pretendendo criar uma ponte, outra vez espertinho, fui requisitar a Poesia Completa do sôtor Gedeão, mesmo tendo o livro à disposição em casa ("Se pretende bajular-me, olhe que eu sou pouco permeável a graxa").
O resto é só boas recordações.

(ACS)

*


Foto de Margarida Monteiro tirada no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, "que visitei em 2003".

*

Em minha casa tenho a biblioteca dividida em três áreas: ficção, não ficção e banda desenhada. Estão todas razoavelmente organizadas, com as duas primeiras ordenadas por autor. A de banda desenhada é diferente, porque mais complicada de estruturar: optei por ‘personagens’, ‘colecções’ e ‘autores’.
A minha paixão por esta área começou porque me tentaram proibir de ler “quadradinhos”. Pelo lado da minha mãe, sou filho e neto de professores primários, daqueles que, normalmente, se rotulam de “clássicos”. Para o meu avô, a BD era vista como “fonte do mal” porque não estimulava o leitor no desenvolvimento da escrita, nomeadamente no que às descrições dizia respeito. Paradoxalmente, comecei a ler BD por influência dele. É que, para entreter a minha mãe, o meu avô recortava as diversas histórias publicadas no lendário suplemento juvenil dominical do Primeiro de Janeiro, e compilava-as em “livro”. Pouco depois, descobri que uns vizinhos tinham a colecção completa da revista ‘Tintin’, devidamente encadernada. Esse Verão, o de 1978, foi fantástico...
O primeiro álbum que adquiri foi do Michel Vaillant, “Os Cavaleiros de Koenigsfeld”, de Jean Graton. Comprei-o numa livraria, cheia de pó, que existia mesmo ao lado da entrada do cinema Trindade, no Porto, onde o meu pai comprava os livros jurídicos que hoje tenho no meu escritório. A partir daí nunca mais parei. Tenho milhares de livros de BD, de todas as proveniências, cobrindo todas as "escolas" e tendências, mas, como não há amor como o primeiro, continuo fiel à área franco-belga.
Hoje, claro, debato-me com a inevitável falta de espaço. Mas já vislumbro a solução. Tenho um tio, professor na Universidade do Minho, que fez uma coisa fantástica: debatendo-se com falta de espaço, comprou um apartamento. Mandou retirar a cozinha pré-instalada e apenas colocou luz, uma mesa, uma cadeira e desumidificadores. As paredes, essas, estão completamente forradas de livros. Tem 70 anos e, eu, metade. Estou certo que chegarei ao "Paraíso" mais depressa do que ele.


(Pedro Brás Marques)


*

(...) não resisto a falar-lhe de uma biblioteca que, não sendo particularmente rica, preencheu, no entanto, muitas tardes e muitos invernos da minha juventude. Refiro-me à Biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Situada em pleno parque, num jardim magnífico, verde e húmido, que eu era obrigado a atravessar de cada vez que lá ia. Logo no percurso me cruzava com os patos e as aves residentes que por ali deambulavam e chilreavam indiferentes à minha passagem, sentindo o cheiro dos pinheiros e de alguns eucaliptos.
Conheci-a por recomendação de um dos meus professores, quando em determinada altura necessitei de realizar um pequeno trabalho- Rapidamente me tornei seu leitor assíduo.
Era uma casinha pequena, um anexo do palácio, com uma sala aconchegante, com duas mesas, havendo quatro lugares em cada uma delas e mais dois pequenos sofás junto a uma lareira onde durante todo o Inverno o fogo crepitava. O pessoal era extremamente atencioso e logo à segunda ou terceira visita, assim que me tornei familiar, deixou-me à vontade. Passei então a circular livremente pelo meio das estantes, a sentir o cheiro do papel velho misturado com o dos pinheiros e da humidade, agarrando em todos os livros e mais alguns, devorando uns a seguir aos outros. De Eça a Camilo, de Baudelaire a Balzac, de Maupassant a Malraux, tudo me interessava. Ao fim do dia requisitava dois ou três livros para levar para casa, livros que religiosamente devolvia dois ou três dias depois. Cada um desses livros tinha uma ficha na contracapa onde a funcionária de serviço anotava o dia em que o livro era entregue e a data prevista para a devolução. Ali passei muitas tardes de Inverno (eu tinha aulas de manhã) e muitos dias de Verão quando o calor apertava e a praia se tornava insuportável devido aos magotes de gente que a enchiam. Nesse tempo só podia ir ao Guincho, a minha praia de eleição, quando alguém me dava boleia. Não tinha idade para ter carta de condução, não tinha carro nem mota e detestava ir sozinho no autocarro que saía da estação de Cascais. A biblioteca foi muitas vezes o refúgio das minha paixões juvenis quando eu, desesperado, procurava nos livros as respostas que não encontrava nas minhas amadas. A liberdade e o conforto que gozava dentro daquela bilbioteca e a inexistência de qualquer burocracia na requisição dos livros faziam daquele espaço um oásis.
Aquilo que eu ali não tinha - burocracia - passei a ter quando entrei para a Faculdade e comecei a frequentar outras bibliotecas. As idas à Biblioteca Nacional, à Gulbenkian ou mesmo à biblioteca da minha faculdade tornavam-se um suplício. Não sei porquê mas tinha a sensação de que chegava sempre na hora de fechar tal a desconfiança com que me olhavam. O cerimonial do preenchimento da requisição, a distância entre mim e os funcionários, a necessidade da exibição do bilhete de identidade, do cartão de estudante, o tempo de espera até que o livro chegasse, sentado no meu lugar, olhando o tempo a passar enquanto o livro não chegava, vagaroso, no carrinho da distribuição. O que mais me aborrecia então era ter de me limitar a procurar os livros, que eu muitas vezes nem sabia que existiam, nas fichas, sem poder manuseá-los antes de os requisitar. E quantas vezes, no fim, chegava a desilusão. Não era nada daquilo que eu queria. O título não tinha correspondência com o texto, a ficha estava mal preenchida, o autor era afinal o editor. Uma tristeza. Tanto tempo a preencher a requisição e à espera do livro para passados cinco minutos já estar a devolvê-lo e a preencher nova requisição, logo seguida de nova espera.
Talvez tenha sido tudo isso que mais tarde me fez detestar Lisboa. Sentia tudo aquilo muito distante, demasiado rígido para o meu gosto. Para quem se tinha habituado a frequentar a Biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, com todas as suas limitações, era muito difícil aceitar as regras das outras bilbiotecas. Ainda fui algumas vezes a uma biblioteca municipal, creio eu, ali para os lados do Campo Pequeno, mas já não havia nada a fazer.
Algumas anos volvidos voltei a encontrar duas bibliotecas muito agradáveis, já não em Portugal, mas em Macau. A velhinha bilbioteca do Leal Senado de Macau e a pequena bilbioteca chinesa, junto ao Clube Militar. Mas o tempo já era outro, eu já não era o mesmo e os meus interesses também tinham mudado.
Durante o meu mestrado frequentei com indiscritível prazer as bibliotecas do ICS e do ISCTE. Só que mudando as preocupações e os interesses também mudam os livros. De todas elas guardo boas recordações, pese embora o barulho da última, mas até hoje nunca encontrei outra biblioteca como a do Museu dos Condes de Castro Guimarães. Não sei como ela está nos dias que correm, mas espero que continuem a cuidar dela, com o mesmo pessoal atento e simpático que me transportou para uma outra dimensão do prazer da leitura e do convívio com os livros. Foi um tempo doce e sereno o que passei nessa bilbioteca, tempo que hoje recordo com uma imensa saudade.

(Sérgio de Almeida Correia)

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EARLY MORNING BLOGS 443


Hopper

Filling Station


Oh, but it is dirty!
--this little filling station,
oil-soaked, oil-permeated
to a disturbing, over-all
black translucency.
Be careful with that match!

Father wears a dirty,
oil-soaked monkey suit
that cuts him under the arms,
and several quick and saucy
and greasy sons assist him
(it's a family filling station),
all quite thoroughly dirty.

Do they live in the station?
It has a cement porch
behind the pumps, and on it
a set of crushed and grease-
impregnated wickerwork;
on the wicker sofa
a dirty dog, quite comfy.

Some comic books provide
the only note of color--
of certain color. They lie
upon a big dim doily
draping a taboret
(part of the set), beside
a big hirsute begonia.

Why the extraneous plant?
Why the taboret?
Why, oh why, the doily?
(Embroidered in daisy stitch
with marguerites, I think,
and heavy with gray crochet.)

Somebody embroidered the doily.
Somebody waters the plant,
or oils it, maybe. Somebody
arranges the rows of cans
so that they softly say:
ESSO--SO--SO--SO

to high-strung automobiles.
Somebody loves us all.


(Elizabeth Bishop)

*

Bom dia!

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4.3.05


BIBLIOFILIA: TEMPOS DUROS, BOAS CAPAS



Pois é. O grafismo dos anos trinta era vigoroso e ainda pareceria mais forte se o comparássemos com as capas das décadas anteriores. Isto era verdade para publicações nacionalistas e fascistas como estas, mas também para as comunistas que, como eram clandestinas, são menos conhecidas e tinham menos meios ao seu dispor. Entre as coisas que são a outra (ou a mesma face?) das matanças espanholas, que apareciam na última “bibliofilia”, está esta vitalidade da arte em momentos duros. E, registe-se, sem lado.

A arte, a bem dizer, vende-se barato.

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MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (2ª série)



E. Ruscha

Tenho gravado na memória o registo de um ambiente muito português, mas pouco conhecido pelos que nasceram em Portugal. Trata-se do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro . Lembro de ter passado muitas manhãs neste ambiente fantástico, feito exclusivamente para privilegiar a leitura, pensado ao pormenor para oferecer conforto aos leitores. Principalmente quanto a utilidade e beleza impar de seu imenso tecto de vidro, que confere ao ambiente uma luminosidade indescritível nos ensolarados dias tropicais do RJ.

O acervo, segundo anunciam, é o maior de autores portugueses fora de Portugal. Foi ali que conheci Eça de Queirós, Gil Vicente, Jaime Cortesão, António Sérgio, Damião Peres e, até mesmo, Vitorino Magalhães Godinho.

Eu fazia, à noite, o curso de História na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e durante os meus dias, me dedicava à leitura. Quase sempre na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mas muitas vezes no adorável Real Gabinete Português de Leitura.

(Edgard Costa)

*

Fico impressionada com a quantidade de pessoas que lhe escrevem a contar as suas histórias e a relação estreita que tem com os livros. Surge muitas vezes referência às bibliotecas itenerantes da Gulbenkian. Havia uma em Mogadouro que a minha mãe frequentava e que eu ainda cheguei a ver. Quando era criança passava às vezes por uma outra, já residente e também da Gulbenkian, onde o meu tio J. ainda é bibliotecário. Foi lá que descobri os livros do elefante Babar. Mais tarde, numa biblioteca onde haveria de descobrir outros mundos, a do Instituto Britânico no Porto, devorei revistas de cinema e enciclopédias de arte. Encontrei lá Kazuo Ishiguro e William Golding.

Devo em grande parte à minha mãe esse prazer da leitura que trago hoje comigo e que espero passar adiante. Devo-o também a alguns amigos. Mais que da leitura, o prazer dos livros. Um dos presentes que mais gozo me deu receber foi a biblioteca que herdei do meu tio D. Modesta, acompanhou-o numa vida celibatária passada entre uma África imensa e uma Trás-os-Montes fechada. Descobri lá Salgari e a Agatha Christie. A leitura de tantos livros policiais na adolescência devo-lha a ele. Ficou-me talvez o fascínio pelo chá desses ambientes interiores do countryside inglês. E também das estórias dos colégios ingleses da Enid Blyton, onde os pic nics a meio da noite e as escapadelas à disciplina austera eram frequentes. A relação mais afectuosa com os livros da infância e da adolescência.

(PPM)

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Sinto um misto de saudade e carinho muito especiais, sempre que passo em frente ao edifício da Câmara de Leiria – belo exemplar da vasta obra do ilustre Arq. "naturalizado” Leiriense Ernesto Korrodi - e recordo aquela sala do 1º andar que albergava no início dos anos setenta a velha biblioteca Afonso Lopes Vieira. Era pequena e escura, com estantes em madeira de mogno atafulhadas de livros, revistas, enciclopédias e manuscritos. Havia ainda alguns bancos também em madeira, 3 ou 4 secretárias para estudo individual e um candeeiro de luz amarela que, naquelas noites invernosas ou tardes de canícula , me proporcionavam um conforto acolhedor e um ambiente de grande recolhimento, propício ao estudo e reflexão.

Mas o que retenho ainda mais agudamente na memória é a figura da funcionária da biblioteca, uma senhora à beira da reforma que nunca mais vi nem nome não recordo, sempre solícita, de bom trato e que me ajudou também na gramática e nas traduções do Alemão. A Senhora tinha na sua juventude aprendido a língua teutónica e ficava entusiasmada sempre que lhe falava em alemão ou lhe solicitava ajuda! Reconheci depois que algum desse entusiasmo me foi transmitido e incentivou as minhas leituras. Até hoje!

(Manuel Oliveira)

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Na inauguração da nova Biblioteca Municipal de Odemira (baptizada de "José Saramago"...), disse o vereador da cultura:
"Todo este espaço sucede na sua função cultural, à velha mas tão querida Biblioteca da Gulbenkian, a quem, nunca será demais agradecer o trabalho desenvolvido tantos e tantos anos no país e também em Odemira, bem como a doação total do acervo com cerca de sete mil exemplares à Biblioteca Municipal."

No site da Câmara Municipal de Odemira, faz-se a apresentação da Biblioteca Municipal e da importância da Fundação Gulbenkian. Curiosamente, também o presidente da CMO, autor do texto, cita logo à cabeça, o Emílio Salgari:
"Eram as carrinhas-biblioteca da Gulbenkian que à sexta à tarde chegavam, enquanto a malta de olhos esbugalhados e não sem alguns empurrões à mistura para assegurar um melhor lugar, ficava na bicha. À espera…Eram os Cinco, as aventuras de Emílio Salgari, de Júlio Verne, eram Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis…Poucos e sempre os mesmos, os livros eram disputados ao palmo. A sua "raridade"
levava a que frequentemente houvesse lugar a segunda ou terceira leitura. Inacreditavelmente havia sempre algo de novo…Depois foi a biblioteca fixa em Odemira. Pequenina, escura e desconfortável, mas extraordinariamente rica de conteúdo, de cumplicidades, de amizades e de sonhos. Depois, um pouco a nossa utopia. "
A nova Biblioteca mantém um serviço de "Bibliomóvel ", um veículo que transporta uma biblioteca pelas freguesias do interior do maior concelho do país.

(Luis Silva)

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Na nossa família, as bibliotecas vão passando de pais para filhos… Mas com o incurtar das casas, as coisas vão-se tornando difíceis. Lembro-me de casa dos meus avós onde havia armários repletos de livros: os de exposição na sala, eram os permitidos por quem mandava nessas coisas (havia mesmo o Índex, onde estava determinados os autores que podiam ou não ser lidos): livros para toda a família, adolescentes, senhoras. Por exemplo, livros de autores franceses, alguns até galardoados mas com prémios talvez um pouco duvidosos, pois os conteúdos… E nas salas menos expostas estavam os livros mais “intelectuais” onde era preciso pedir licença para serem lidos – principalmente sendo eu uma miúda, pois nem tudo era lisível.

A minha mãe, senhora considerada intelectual para a altura pois até tinha um curso superior, era uma amante de livros e toda a vida gastou, desde que começou a ganhar dinheiro, o que podia em livros. Havia primeiras edições de Vergílio Ferreira, Mário Dionísio, Vitorino Nemésio, e livros proscritos como os de Eça, Zola, André Malraux, Mário de Sá Carneiro, etc. A cultura era mais franco-portuguesa, era houvessem livros de escritores ingleses, Hemingway, Huxley, Maugham, Shaw.

Do meu pai herdei o gosto pelos livros de aventuras: Dumas, Verne, quilos de livros de aventuras de cowboys, a colecção dos livros de Simões Muller sobre as biografias de pessoas célebres como Florence Nitthingale, Camões, os Pony Express, etc. e, é claro, a banda desenhada: o Mundo de Aventuras, mais tarde o Tintin e ainda o jornal da Mocidade Portuguesa para meninas: A Fagulha.

E ainda, graças à falta de televisão, comecei a ler tudo o mais que apanhava. Trocavam-se livros com toda a gente: entre primos, amigos.

Lembro-me uma vez de uma tia ter ganho um prémio de um concurso do Diário Popular cujo prémio era 20 contos em livros (uma fortuna!) em diversas editoras. E como não era muito dada a essas coisas, convidou-me para partilhar com ela o prémio: fomos à Sá da Costa, à Bertrand e outras editoras de que não me lembro o nome, mas que me deram bons livros. Foi um regalo.

Agora na minha casa, tenho beneficiado das heranças: o espólio da minha mãe foi dividido entre os irmãos mais “intelectuais” e reconheço ter-me aproveitar do desconhecimento de alguns para ficar com uma biblioteca razoável. E as tias velhinhas a morrer têm-me permitido alargar o leque de livros, com os livros de Poche, embora a falta de espaço seja aterradora. Tenho alguns milhares, uns que li, outros que não e alguns que gostaria de reler. Estou à espera da reforma, cada vez mais longe, para passar 10 anos seguidos sem sair do sofá. Nos intervalos vou lendo como posso. Todos os dias um pouco.

Gostaria que os meus filhos também lessem: mas fazem-no pouco, muito pouco. Hoje lêem-se outras coisas. Tenho uma neta a quem vou passando os Condessa de Ségur que li quando tinha a sua idade. Poderá ser a minha esperança.

(B. Nolasco)

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INTENDÊNCIA

Actualizada a nota BIBLIOFILIA: EFÉMERA DOS TEMPOS DA PESTE com a história de uma terrível pergunta: "É um grande espectáculo assistir à morte de um homem, verdade?"

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EARLY MORNING BLOGS 442

Breakfast


Rush hour, and the short order cook lobs breakfast
sandwiches, silverfoil softballs, up and down the line.
We stand until someone says, Yes? The next person behind
breathes hungrily. The cashier's hands never stop. He shouts:
Where's my double double? We help. We eliminate all verbs.
The superfluous want, need, give they already know. Nothing's left
but stay or go, and a few things like bread. No one can stay long,
not even the stolid man in blue-hooded sweats, head down, eating,
his work boots powdered with cement dust like snow that never melts.


(Minnie Bruce Pratt)

*

Bom dia!

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MAIS MEMÓRIAS DA BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL DO PORTO

Enviadas por Sílvio Costa estas fotografias que são o exacto retrato da Biblioteca que ainda conheci:

Biblioteca Pública Municipal do Porto - Anos 60

Todos voltados para o mesmo lado, de frente para o vigilante da sala (o seu amigo só podia desenhar desta perspectiva), as mulheres a um lado, os homens ao outro…



… e ao fundo a estante de coro e os mais novos, mais irrequietos.



Fotografias de Platão Mendes em MARJAY, Frederic P. Porto : capital do norte origem de Portugal. Lisboa : Bertrand, 1963.

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BIBLIOFILIA: EFÉMERA DOS TEMPOS DA PESTE



Num arquivo, que recentemente obtive, estão um conjunto de documentos, jornais, panfletos, fotos, cartazes e livros muito interessantes, todos eles retratando a tumultuosa vida da Península Ibérica no século XX. Um deles é esta edição falsa do Avante! feita pela PIDE ou pela Legião em 1962 e destinada a caluniar Delgado e a usar o seu passado anti-comunista contra o PCP. Conhecem-se vários casos de números falsos do Avante!, mas este é mais perfeito na sua cópia do grafismo do jornal verdadeiro.


No arquivo está também uma série de fotografias mostrando uma realidade mais trágica. É um conjunto de fotos tiradas durante a guerra civil espanhola e que desconheço se são total ou parcialmente inéditas pelo menos em Portugal. Todas retratam cenas de violência e morte, fuzilamentos, cadáveres no chão, campos e ruas com mortos. Algumas estão legendadas à mão em português, como esta série que retrata a prisão interrogatório e fuzilamento de "comunistas" em Llerena, na Estremadura, na circunscrição de Badajoz. Sabe-se que Llerena foi tomada pelos nacionalistas em princípios de Agosto de 1936 e que logo a seguir houve centenas de fuzilamentos. É provável que estas fotos testemunhem esses fuzilamentos de 5 e 6 de Agosto. Como neste mesmo período de tempo, o jornalista português Mário Neves se encontrava na região e foi uma das raras testemunhas do chamado "massacre de Badajoz", é provável que estas fotografias tenham sido por ele tiradas ou trazidas.

*
A propósito das fotos dos fuzilamentos em Badajoz, lembrei-me de uma história contada por um tio-avô, que foi testemunha desse trágico momento. Naqueles anos 30, a guerra civil espanhola era seguida com toda a atenção, e após a queda de Badajoz, organizaram-se excursões para assistir a esses fuzilamentos naquela cidade.

Presumo que a maioria das pessoas que estava nessas excursões alinhava pelas ideias do Estado Novo. O objectivo da viagem era assistir à punição dos agressores da sociedade, daqueles que atentavam contra o nosso modo de vida, a "tranquilidade social" defendida pelo antigo regime. A viagem a Badajoz era uma manifestação da solidariedade aos franquistas e uma afirmação da ideologia política de cada um dos excursionistas.

Numa dessas excursões, os anfitriões espanhóis cederam uns lugares especiais aos convidados portugueses para que pudessem apreciar todos os pormenores das execuções. Aconteceu que os homens que iam ser fuzilados pararam por uns instantes em frente aos convidados portugueses.

Um desses homens percebeu que estavam ali estrangeiros para assistir à sua morte. Olhou alguns deles nos olhos e perguntou-lhes "Sois portugueses, verdade?" Alguns responderam que sim. "É um grande espectáculo assistir à morte de um homem, verdade?" perguntou-lhes o condenado.

Esta pergunta deixou profundamente transtornados vários portugueses. Alguns perceberam imediatamente que tinham levado o seu combate político longe demais. Sentiram-se profundamente envergonhados por presenciar aquele “espectáculo”; apenas queriam sair dali o mais rapidamente possível. Aquela pergunta de um homem condenado à morte fê-los perceber que nenhum combate político podia justificar a morte de uma pessoa. Passadas algumas décadas, alguns ainda recordavam o rosto e a expressão daquele homem ao dirigir-lhes aquelas últimas palavras.

(Marco Oliveira)

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3.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS

Em Odemira, no ínicio dos anos 80, a biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian era visita diária para mim e para mais alguns miúdos que não tinham muito mais onde ocupar o tempo que sobrava da escola. O ínicio da adolescência pedia a leitura de aventuras fantásticas, de bandas desenhadas que não da Disney, de autores e mundos ainda não visitados. O Sr. Gilberto era o guardião de duas pequenas salas com estantes a toda a volta, do chão ao tecto, repletas de livros devidamente identificados com tiras de côr diferentes. No seu interior um cartão listava os leitores e as datas de em que tinham sido entregues ao seu cuidado. O velho Sr.Gilberto tinha sempre uma inesperada rispidez para os jovens frequentadores das duas salas e era imperdoável com os retardatários nas devoluções. Ao mesmo tempo, quando chegava nova remessa de livros era com um ar de quem oferecia um doce às escondidas, que nos indicava a sala do fundo. "Chegou uma nova remessa. Vai lá ver se encontras alguma coisa". Encontrei como encontrava sempre. Encontrei o Sandokan do Salgari, encontrei a BD do Alix, do Blake & Mortimer... Encontrei a Agatha Christie e Conan Doyle. Encontrei muitos que agora não lembro. Mais tarde encontrei um outro livro. Tinha doze ou treze anos, quando decidi levar para casa um livro de que tinha ouvido falar na televisão. O "1984" é coisa para marcar um adolescente.
Nunca agradeci à Gulbenkian e ao Sr. Gilberto o ter viajado e aprendido tanto.

(Luís Silva)

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Por razões de vida raramente tive acesso a bibliotecas publicas até ao fim da adolescência. Contudo, o meu pai, fez uma excelente biblioteca ao longo da vida, e de tudo e todos, portugueses, brasileiros, ingleses, americanos, russos,etc.,romances, biografias, poesia, teatro, aos franceses é que numca se chegou por aí além. Como na minha infãncia viviamos numa pequena ilha do Indico que fez o meu pai quando ainda tinha 3/4 anos. No meu quarto, na "sala de estar", tinha sempre á mão de semear, estava cercado de livros, revistas, jornais, volumes de inciclopédias e quadradinhos. E de aí veio meu prazer pela leitura e pelos livros, a capa, o papel, a letra.Li a biografia de Talleyrand aí com 12 anos, quase nada percebi. Estou agora a reler porque os tempos aconselham. Mas é porque na adolescência o tive na mão !
A paixão do meu pai pela literatura vei de que em criança, de pais humildes, que trabalhavam na terra, teve a oportunidade de em criança passar dias na biblioteca particular de Homem Cristo(Pai), que me disse ter sido de ctegoria excepcional para o país e para a época.
É nessa idade que se tem desenvolver a curiosidade pelo pensamento dos outros e saber da existência das coisas.

(C. Indico)

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O fascínio pelos livros nasceu na consulta de bilbliotecas familiares. A edição completa do Arquivo dos Açores, editada por Ernesto do Canto, exerceu sobre mim um enorme fascínio. Recordo-me de, enquanto a minha prima tocava piano, eu, então com 14 anos, consultava, deliciado, aquele magnifíco amontoado de documentos sobre a História dos Açores.
O passo seguinte foi a então Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Ponta Delgada, onde, nas férias, devorava livros de História e Literatura. Aos 15 anos, ganhei a reputação de leitor assíduo, onde com Hugo Moreira, um cinquentão investigador da História Açoriana, ocupávamos diariamente os nossos lugares cativados pelo uso. Ganhei direito a que o Sr. Silvestre, um bibliotecário profundamente conhecedor do espólio micaelense, me conduzisse numa visita guiada às preciosidades bibliográficas do Largo da Graça, onde, no antigo Convento dos Gracianos, se encontrava alojada a instituição. Tive o privilégio de percorrer demoradamente as estantes onde se encontravam conservadas as bibliotecas particulares de Antero de Quental, de Teófilo Braga, dos irmãos Ernesto [a preciosa AÇORIANA] e José do Canto [A PRECIOSA CAMONIANA], do marquês de Jácome Correia, de José Bensaúde, de Bruno Tavares Carreiro [A PRECIOSA ANTERIANA] e de aluns outros mecenas.
Jamais esquecerei o amor e o carinho que os probos funcionários daquela casa dedicavam às preciosidades a seu cargo, mas, também, a atenção que prestavam a todos os jovens que então frequentavam a biblioteca, entre os quais me incluí.
Mesmo nas férias de Verão, podíamos frequentar a sala de leitura até às 22H00. Só depois íamos passear para a Avenida Marginal, um dos diverimentos favoritos dos pontadelgadenses nos meses de Estio.

(Jorge Couto)

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A minha primeira memória de leitura é da minha mãe a ler a Branca de Neve, à noite, no quarto que eu partihava com os meus três irmãos, e da sua exclamação involuntária (”Que disparate!”) ao ler que a princesa tinha “ombros diáfanos”. A minha mãe, cientista, gostava de rigor e exactidão em tudo. Mais tarde, começaram as disputas sobre quem seria o primeiro a ler o Tintin, que às vezes acabavam com a revista rasgada em dois.
Quando tinha 10 anos, a professora de um dos meus irmãos mais novos emprestou-me o Diário de Anne Frank. Foi a primeira vez que um adulto me emprestou um livro. Nunca mais me esqueci dela, do gesto e do livro, e da imensa tristeza pela sorte daquela menina que gostava de ler e de escrever e que não pôde crescer. Foi também o primeiro livro que li que não acabava bem.
Depois, a espera pela próxima visita da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, e o receio de que o senhor percebesse que eu estava a requisitar livros para mim com dois cartões, o meu e o do meu irmão mais velho. Eu só podia levar livros com bolinha verde, ele já podia ler os de bolinha vermelha (ou laranja?), os que eu mais apreciava. Foi aí que assinei o meu primeiro abaixo-assinado, uma petição (inútil) à Gulbenkian para que não acabasse com as bibliotecas itinerantes.
Li todos os livros lá de casa, incluindo o Crime do Padre Amaro que a minha mãe, ao ver como a minha fome progredia, escondeu em cima do guarda-fatos. Foi, claro, o primeiro Eça que li. E diverti-me imenso a comparar as duas edições do D. H. Lawrence, a da minha mãe censurada, a do meu pai integral.
Nas férias, atacava as estantes dos meus tios, que não compreendiam mas aceitavam com um encolher de ombros (muito pouco diáfanos) que eu, por vezes, preferisse ficar a ler num canto em vez de ir brincar ao sol, no tanque, com o resto das crianças da família.
Quanto às outras bibliotecas onde entrei no decurso da vida académica, continuo a frequentá-las porque fiz da vida académica o meu modo de vida. São menos simpáticas que as da infância e adolescência, mais familiares e menos misteriosas e, sobretudo, visitadas mais por dever do que por prazer. Pudesse eu ter todos os livros que me fazem falta em casa! Na minha biblioteca.

(STP)

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Devem ser poucos os que antes, durante e mesmo depois da minha geração, e que residiam ou estudassem nesta cidade de Évora não tenham passado, frequentado, utilizado a biblioteca pública de Évora.
Aqueles que, no meu tempo de estudante e tal como eu, passaram tardes inteiras na companhia daquele espaço, das figuras sempre presente e eternas do Chitas e da Jacinta, sabem que é um espaço maravilhoso.
Entrei nele pela primeira vez deveria ter uns 11 ou 12 anos, fruto de um trabalho do ciclo, daquelas coisas impostas pelos professores e que nos obrigavam a procurar outras fontes de informação.
O peso do espaço oprimia uma criança e, perante aquelas formalidades e a figura daquele homem que, de dedos amarelos, óculos fundo de garrafa na ponta do nariz, entre o corcunda e o encorvado, nos pedia o bilhete de identidade num tom de voz quase que sussurrado, sentiamo-nos ainda mais pequenos, constrangidos a penetrar naquele espaço quase de tons sagrados.
Mas, passado o receio inicial, compelidos pela necessidade, lá subiamos as escadas, curvavamos, cada um por seu lado e, chegados à imponente porta, a empurravamos com um típico guinchar de anos passados. Davamos por nós num imenso salão.
De um lado a figura imponente de frei Manuel do Cenáculo a ocupar toda a parede. Figura que nos vigiava, que vigiava namorados e leituras, textos e ternuras que também se trocavam naquele espaço, a tentar fintar os olhos de quem velava pela integridade do espaço, pelo pesar dos anos passados.
Do outro, o balcão a impor uma barreira de límites que apenas atravessei, já grande, estudante universitário e onde se alojavam aquelas duas figuras que tudo conheciam, que tudo sabiam.
Sempre me impressionaram pelo seu conhecimento, pela simpatia que colocaram na relação com quem, ignorante e pequeno, procurava aquele espaço. Fossem temas de ciências, artes, humanidades, ofícios ou apenas prazeres simples de descoberta eles conheciam um livro, um título adequado, útil às pequenas pretensões de quem descobria a vida nas páginas de um livro, nos textos, nas imagens.
Passados todos estes anos, tenho na Jacinta uma amiga indefectível, companheira de muitas e longas conversas, no Chitas um parceiro de cumplicidades, de troca de ideias e de amostragem de livros. Um companheiro de leituras.
No ano passado, na pausa da Páscoa, fiz uma visita guiada com os meus filhos áquele espaço, ao reencontro dos livros. Com as mesmas pessoas, e outras que entretanto aparecereram, pedimos livros para estarmos ali, apenas a passar os dedos, a folhear pensamentos, entretidos a passar uma manhã. Percorremos as suas diferentes salas, sentimos o peso dos livros, o cheiro dos anos, o respeito dos pensamentos e das ieias que aquelas estantes guardam.
A Biblioteca Pública, como sempre foi e é conhecida, faz 200 anos. Penso que a cidade deveria ser convidada, obrigada a participar nesta festa, que as portas se abrissem, que os livros pudessem, pelo menos uma vez, fugir, escapar-se pelas ruas e percorrer o exterior como sangue que nos enche as veias.

(manuel dinis p. cabeça)

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Desde que me lembro que me sinto fascinado pelos livros. Ainda miúdo, como não tinha dinheiro, ia trocar os meus livros usados por outros ainda mais usados numa livraria da Rua do Bonjardim. Assim, contactei com o Major Alvega, o Mandrake, mas também o Júlio Verne e uma colecção excepcional de cujo nome não me lembro que era composta por biografias de pessoas famosas: Madame Curie, Benjamim Franklin, Edison, e muitos outros.
Agora, já adulto e com 4 filhos (dos 4 aos 13 anos), tenho muitos livros lá em casa. Coloquei uma estante na sala onde os meus livros estão acessíveis para que os meus filhos os possam ver, folhear e habituar-se à sua presença. Dessa forma, vão pegando neles e cheirando-os, coisa que a internet nunca lhes poderá proporcionar.
Por minha vontade estaria mais ligado aos livros, mas infelizmente permiti que a vida tomasse conta de mim. Resta-me a esperança da velhice.

(José Pinho)

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Acreditem. O primeiro livro que li até ao fim (teria eu 8 ou 9 anos) foi um cujo título era (ou é) "Um Passeio à Serra da Estrela". Uma prenda para quem souber o seu autor.

(Fernando Barros)
Não sei se será o mesmo (penso que não) mas há um livro de Emidio Navarro que penso entitular-se "4 dias na Serra da Estrela" e que descreve uma expedição feita no seculo XIX, relatando o que então pouco mais era que "terra incognita". Nunca consegui arranjar um exemplar embora tenha procurado em meia duzia de alfarrabistas.
Ha 4 anos tive oportunidade de fazer a maior parte do trilho T1 desde perto da Guarda até Loriga num total de 70 e tal km e passando pela Torre. Aconselho! Conheci locais quase inacessiveis (de carro) e portanto desconhecidos para 99,9% das pessoas, como o Vale dos Condes ou a descida para Loriga, por exemplo. E ainda bem...
(João Cardoso)

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A mim me coube a indizível felicidade de receber encaixotadas e a monte as bibliotecas pessoais de Leonardo Coimbra e do Professor Braga da Cruz, antigo Reitor da Universidade de Coimbra.

Nenhum prazer mais sublime pode existir do que ter à mão 30 ou 40 mil volumes que ignoramos completamente, embalados ao acaso, sem catálogo nem descrição. Excitados e nervosos, rasgamos a fita cola que fecha um caixote, sem fazermos ideia nenhuma do que nos espera: uma explicação da teoria da relatividade para não cientistas; as obras de Balmes; um relatório e contas da “Sacor”; um tratado de 1937 de um padre José Ferreira, contra a devassidão e a luxúria; um ilegível tratado de Direito Romano do séc. XIX francês; um ainda mais ilegível Römisches Recht do século XX; uma colecção quase completa da “Biblioteca de Autores Cristianos”; o monotóno discurso proferido na sessão solene de abertura oficial do ano lectivo de 1953-54 na Universidade de Coimbra; uma edição crítica do D. Quixote, em papel bíblia; o Guia de Portugal; as páginas amarelas de 1973; o catálogo da exposição comemorativa do Código Civil com um cartão de visita assinado por Oliveira Salazar; o Caminho de Escrivá de Balaguer; os Sonetos de Antero de Quental, edição clássicos Sá da Costa; Angola, terra linda, serás sempre Portugal; o tratado de Direito Civil de Enneccerus – Kipp – Wolff; as comemorações do centenário da publicação de “os Lusíadas”; o Sermão da Sexagésima...

O mundo todo cabe num caixote de livros, quando não se sabe o que está lá dentro.

A verdadeira biblioteca não é a que está muito bem organizadinha, muito bem catalogadinha, muito bem tratadinha. A verdadeira biblioteca é aquela onde se encontra o que não se procura, onde se encontra o que nem sequer se sabe que existe.

(António Cardoso da Conceição)

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Também com os meus 14 anos ,hoje tenho 69,consultei na B.Municipal de Coimbra o livro de E.Moniz.
Mas o que recordo mais intensamente dos meus tempos de leitor daquela casa,principalmente nas férias grandes, foi a possibilidade de ter acesso a conhecimentos que não estavam disponíveis nessa altura e que me tinham despertado a atenção ,sobre os dias da resistência dos cadetes da A.M.de Toledo,durante a G.C.de Espanha,através de uma referência ao papel do R.C.Português,na citada guerra.
Com a ajuda dos competentes e pacientes funcionários,procurei livros que satisfizessem a minha curiosidade;encontrei -os sobre a guerra no mar,de Maurício de Oliveira e pouco mais!
Foi então que entrei pela primeira vez no mundo maravilhoso de uma biblioteca! Possivelmente por sugestão de algum dos referidos funcionários,comecei a ler todos os jornais da época sobre o episódio do Alcáçar de Toledo.Fiquei esclarecido.
Dai a ler tudo sobre a G.C.de Espanha nos jornais de 1936-39, foram momentos irrepetiveis e ainda hoje,que sobre o assunto há razoável bibliografia ,reconheço que aquela Biblioteca prestou um relevante serviço na formação de um jovem de 15 anos.

(A.L.B.Barrinhas)

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A minha primeira biblioteca tinha a dimensão de uma estante com vidros, no canto da sala que me parecia enorme. Nessa enorme biblioteca descobri "O crime do padre Mouret" de Emile Zola. Mais tarde, na Biblioteca Itenerante da Gulbenkian descobri Enid Blyton. Ainda mais tarde, na Biblioteca Municipal descobri "O crime do padre Amaro" de Eça de Queiroz. Um pouco mais tarde, na biblioteca da Fundação Gulbenkian descobri "O Apocalipse do Lorvão" de Anne de Egry. Muito mais tarde, na biblioteca pessoal de um amigo, descobri as "Obras Completas" de S. João da Cruz. Ainda muito mais tarde, na biblioteca da minha mesa de cabeceira, descobri o "Caminho" de Josemaría Escrivá. Socorro!

(Sílvia)

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Certa vez julgando entrar numa, em casa particular, deparei-me com uma adega onde um tio de um amigo chamando-lhe “a minha biblioteca”, tratava os vinhos como livros. Acrescento que “li” naquele sítio alguns e bons “livros”. Nunca me arrependi.

Finais da década de sessenta, aluno no Colégio Moderno à Rua de Malpique em Lisboa, passava diáriamente no passeio em frente à Biblioteca Nacional.

Um dia, após ter assistido a partir do pátio traseiro do colégio às manifestações estudantis na Faculdade de Direito, ali bem ao lado, às consequentes fugas à frente da polícia de choque e até às perseguições pelos baldios movidas por civis armados (mais tarde percebi o que era a PIDE), ao regressar a casa apanhei daquele passeiouns panfletos que guardei entre as folhas de uma sebenta, total e absolutamente inconsciente dos riscos.

Falavam, os panfletos, da luta dos estudantes universitários em particular e de todo um povo em geral contra a repressão policial do regime e contra ele em si mesmo. Desde esse dia o meu pequeno mundo começou a transformar-se…

Mais tarde e fruto da mistura de uma maior consciência e de algum medo, não sei bem em que doses, os panfletos rasgadinhos em pedaços foram queimados num caixote de lixo bem longe da rua onde morava. Ainda hoje me arrependo do medo !

(JCB)

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Nos idos (muitos) anos de sessenta, frequentava eu o então designado Liceu Nacional de Gil Vicente, à Graça, em Lisboa. Para alguns trabalhos da disciplina de Língua e História Pátria, creio que era assim que se designava, havia necessidade de consultar documentação não disponível na pequena biblioteca do liceu. Um dia calhou-me em sorte, um trabalho sobre a 1ª Travessia Aérea do Atlântico, efectuada pela dupla Gago Coutinho/Sacadura Cabral.

Através de mão amiga descobri a biblioteca da veneranda Sociedade de Geografia. Nas suas sumptuosas e pesadas salas da biblioteca, passei a pente fino o diário que Gago Coutinho tinha elaborado sobre a travessia, encolhido na minha cadeira, sentindo ao redor o peso da responsabilidade que muitos senhores, que também liam outras comunicações, transmitiam pela sala. O silêncio era um valor por demais importante e, quando se ouvia um arrastar de cadeira, provocado por um acaso, o responsável por tal acto, quase pedia desculpa por existir.

Eram (e serão, certamente ainda) páginas frementes de vida, de dúvidas e angústias, mas “cozidas” com o fio condutor da esperança e do crer. Manuscritas e preciosas de informação, lá me permitiram, dentro das minhas limitações, produzir um trabalho razoavelmente bom.

Presente ao “se tôr” do Gil, foi, por ele, bem avaliado. Apenas prejudicado na nota, pelo facto do título ser – “ A Primeira Atravessia Aérea do Atlântico”.

Existia rigor na apreciação de como se escrevia a língua portuguesa.

Hoje, quando se recordam bibliotecas, sinto respeito por tal sítio, admiração pelo seu enorme espólio e, esperança de que, quando necessário, qualquer estudioso o possa consultar, sem ter medo de arrastar uma cadeira, quando for preciso.

(Rui Carlos Correia da Silva)

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Sou profissional de informação, trabalho numa biblioteca universitária e tenho a visão de dentro da Biblioteca. Desde os tempos da “cunha” já muito mudou em relação aos funcionários das bibliotecas. Hoje desde cursos profissionais, passando pelas novas licenciaturas, as decadentes pós-graduações, terminando nos mestrados, a formação dos profissionais da informação que trabalham em bibliotecas é cada vez mais especializada.

Desde sempre tive o fascínio da leitura e dos livros, também eu tive a sorte de em casa ter a oportunidade de sempre ter convivido com livros que preenchiam praticamente todos os compartimentos da casa. Não me posso esquecer, no entanto, a sensação de entrar e posteriormente tratar uma “verdadeira” biblioteca privada, daquelas com dois andares, estantes altas em madeira e livros fascinantes que passaram por muitas gerações até repousarem naquele espaço. Desde 1492 até 1920 todos eles passaram pela minha mão, confesso que muitos foram os que li ou passei os olhos. A emoção de ver uma das maiores colecções do livro A Imitação de Cristo, onde constam livros comprados à Biblioteca Victor Emanuel, a Biblioteca Nacional de Italiana. Pensar que toquei, li livros que presenciaram à descoberta do Brasil, às invasões francesas, às revoluções liberais, à queda da monarquia… No meio um conjunto de livros pertencentes a um servidor do Estado, destaco um O Manual do Deputado.

(Nuno Gonçalves de Matos)

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Dos meus oito aos doze anos vivi em Cabo Verde. Não havia televisão, nem consolas, nem cinemas, nem recintos desportivos, nem nada... "Devorei" nesses quatro anos um pouco de tudo o que existia na biblioteca da embaixada de Portugal, a escassos 500 metros de minha casa. Começei pelos Asterix, Luky Luke e algumas prosas adequadas à minha idade, até que por fim voltei-me para literatura técnica sobre física, quimica, matemática, etc...Hoje questiono-me o quanto tudo isso me mudou... até hoje.

(Luis Vaz de Carvalho)

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Princípios de 1950 - Santo André, aldeia perdida na Beira Baixa, teria os meus 8 anos. Na escola havia uma sala pequena e escura, que nunca era aberta. Por razões anormais durante as férias do verão tive acesso a essa sala. Nela havia um armário completamente cheia de livros cobertos de pó e de teias de aranha.
Que gozo! Foi a "Filha do Polaco", todo o Júlio Dinis, o Eça, o Camilo e sei lá mais o quê! A "Ponte sobre o Drina" nunca consegui acabar de ler! Quando me reformar vou tentar de novo... Julgo que foi aqui que ganhei o meu primeiro par de óculos!

(Catarino de Almeida)

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A primeira biblioteca pública a que me lembro de ir não tinha altas estantes, não tinha escadarias, não tinha sala de leitura. Era cinzenta, tinha quatro rodas, três degraus e uma fila ansiosa de pequenas criaturas que queriam ser as primeiras a entrar para ver primeiro os livros novos: era uma Biblioteca Itinerante da Gulbenkian.

(RM)

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No início dos anos oitenta, frequentei a Biblioteca Pública de Braga. O período de férias escolares prolongava-se por três meses e o prazer de ler era a forma de melhor rentabilizar aqueles dias. Era agradável e o ambiente que ali se vivia nunca mais o voltei a encontrar. Logo à entrada, à esquerda, existia uma primeira sala de leitura onde um senhor muito simpático, falava de livros, resolvia dúvidas depois de consultar diversas fichas, dava a conhecer as novidades.

Depois subia-se até ao primeiro andar e entrava-se num mundo completamente diferente ... a sala era imponente e os funcionários habitualmente mal encarados.

Eu gostava de ler jornais antigos, muitas vezes, constatei que acontecimentos de grande importância passavam quase despercebidos como notícia.

Os funcionários consideravam as minhas requisições um pedido sem qualquer sentido, mostravam-se sempre contrariados e diziam "tem a certeza que é este o ano ... vou perder muito tempo ...". Eu pensava, como ainda hoje penso, como era possível encontrar ali pessoas que não incentivavam de maneira nenhuma a leitura.

(Teresa Carrilho)

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O seu blog sobre a biblioteca lembra-me a minha, em circunstâncias idênticas. Posteriormente (julgo eu porque tenho 47 anos) e noutro local: a Biblioteca Municipal de Santarém.

Havia, no entanto, uma diferença significativa. Muito embora eu tivesse, nessa altura, uns 10 anos, o casal que tomava conta dela era afável e muito prestável.

Há uns anos, visitando a pé Santarém, passei pela porta da biblioteca. Ia a sair o casal que naquela altura me atendia. Fiquei chocado. Tinha-me esquecido que os anos foram passando e continuava a recordar-me deles como eram naquela altura. E naquela altura, eram uns 20 anos mais velhos que eu. Raios partam.

(Henrique Martins)

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A OUVIR

Borges lendo Borges na Bomba Inteligente.

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1.3.05


MEMÓRIAS DA BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL DO PORTO (Actualizadas)

O livro proibido que estava nos “reservados” e que era mais popular na leitura era a Vida Sexual de Egas Moniz.

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Havia dois ou três permanentes na sala da Hemeroteca, no rés-do-chão, que tinham uma pilha de livros e revistas guardada religiosamente na sua mesa. No seu caso, os livros não eram “devolvidos”. Faziam quase parte da mobília e sentavam-se horas a fio a tomar notas em papelinhos, vestindo antes umas mangas-de-alpaca para não sujar o casaco ou a camisa. Um destes permanentes foi o meu professor de filosofia no Liceu Alexandre Herculano, Cruz Malpique. O dr. Malpique fazia livros em série, numa produção gigantesca, escrevendo em papel recuperado de outros usos, cortado à faca ou à tesoura, e junto em macinhos que ele enchia sem hesitações na sua letra perfeita. Entre as folhas que ele recuperava estavam as de antigas provas doutros livros. Escrevia livros sobre livros.

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Entre estes permanentes avultavam os autores de monografias locais, normalmente velhos reformados que se percebia não viverem muito bem, dedicados à sua terra e, na verdade, todos um pouco loucos na sua avidez de coleccionadores de efemérides.

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As requisições da Biblioteca foram as minhas primeiras fichas. Como as fichas verdadeiras eram caras e difíceis de encontrar (lembro-me de atravessar a cidade para ir comprar para a biblioteca do meu pai uns verbetes que só havia na Tipografia Maranus na Praça da República, que era da família de Teixeira de Pascoaes, entretanto desaparecida), eu tirava molhos destas “fichas” para fazer anotações, tendo o cuidado de escondê-las dos funcionários. Ainda hoje tenho centenas que escaparam do assalto da PIDE a minha casa. Nunca as deitei fora, como esta de 23 de Junho, depois reciclada para 24 de Junho de 1965, porque toda a gente era muito poupada e não havia esbanjamentos.

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Sem me aperceber, noto agora que várias destas notas retratam um mundo de maior escassez, onde se era naturalmente mais poupado.

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Um dia descobri que havia um jornal chamado O Comunista, órgão do PCP, na hemeroteca com grande surpresa minha. Hoje pode parecer normal, tanto mais que se tratava de um jornal publicado nos anos vinte, quando o partido era legal. Mas no mundo rigorosamente vigiado, censurado e policiado do Portugal de Salazar era uma descoberta excepcional e surpreendente. A biblioteca tinha sido sujeita a várias purgas e embora pense que nunca nenhum livro ou jornal fora destruído, a verdade é que não constavam dos catálogos e não podiam ser consultados.

Precisava de consultar o jornal várias vezes, o que envolvia perigos para mim e para o jornal. A biblioteca tinha funcionários suspeitos de serem informadores (não sei se era verdade ou mentira, mas a suspeita tinha sentido tendo em conta como eram escolhidos) e o jornal podia ser retirado da leitura. A minha sorte é que o jornal fazia parte de uma “miscelânea”, um grupo de jornais com poucos exemplares que tinham sido encadernados em conjunto. Passei por isso a requisita-lo usando o título de um pacifico jornal regional que também lá estava. Apesar da PIDE se ter mais tarde interessado pelo jornal, quando o citei no meu primeiro livro sobre a greve geral de 1918, apreendido pela polícia e que me motivou um processo, nunca o descobriu na biblioteca e assim chegou ao 25 de Abril.

(Continua)

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© José Pacheco Pereira
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