ABRUPTO

7.4.04


EARLY MORNING BLOGS 177

Lembrado por João Carlos Pascoinho, esta felicidade “matinal” de Raymond Carver. Uma tradução portuguesa de Jorge Sousa Braga, inédita fora da blogosfera, pode ser lida no Quartzo, Feldspato e Mica.

Happiness

So early it's still almost dark out.
I'm near the window with coffee,
and the usual early morning stuff
that passes for thought.

When I see the boy and his friend
walking up the road
to deliver the newspaper.

They wear caps and sweaters,
and one boy has a bag over his shoulder.
They are so happy
they aren't saying anything, these boys.

I think if they could, they would take
each other's arm.
It's early in the morning,
and they are doing this thing together.

They come on, slowly.
The sky is taking on light,
though the moon still hangs pale over the water.

Such beauty that for a minute
death and ambition, even love,
doesn't enter into this.

Happiness. It comes on
unexpectedly. And goes beyond, really,
any early morning talk about it.


(Raymond Carver)

*

Bom dia!

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POEIRA DE 6 DE ABRIL

Hoje , há cento e nove anos, Oscar Wilde foi preso depois de ter perdido o processo de difamação que pusera contra o pai de um dos seus amantes, “Bosie”, Lord Alfred Douglas. O pai de “Bosie” provou em tribunal que Wilde era homossexual e este foi preso e condenado a dois anos de trabalhos forçados. Longe estão os tempos em que Wilde descrevia “Bosie” umas vezes como um “narciso”, outras como um “jacinto”: "he lies like a hyacinth on the sofa and I worship him."

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6.4.04



Dankvart Dreyer

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AMANHÃ, COM O PÚBLICO

uma obra genial, os Dubliners, de Joyce. Não sei de quem é a tradução, que espero seja boa. Mas que a obra é genial, é. Veja-se este início de "Eveline", uma das histórias:

"She sat at the window watching the evening invade the avenue. Her head was leaned against the window curtains, and in her nostrils was the odour of dusty cretonne. She was tired."

É preciso dizer alguma coisa? É (se não fosse, não havia história), mas quando se começa assim ...

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EARLY MORNING BLO0GS 176

Este Seu Escasso Campo


Este, seu ‘scasso campo ora lavrando,
Ora solene, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, goza incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Per que concílios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as ervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica,
Filhos, diversa e sua.


(Ricardo Reis)

*

Eu sei que não é "early morning", mas mesmo assim, bom dia!



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5.4.04


ESTA PEQUEÑA PERLA Y AMBICIOSA (...)/ ES DEFECTO DEL NÁCAR


Salvador Dali

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POEIRA DE 5 DE ABRIL

Hoje, há quatro mil e duzentos e cinquenta e dois anos, um barco de madeira encalhou no cimo de um monte. O seu piloto tinha então seiscentos e um anos e acabara de salvar o mundo, como nós o conhecemos. Do barco saíram duas abelhas, e dois pássaros. Birds and bees. Saíram um elefante e uma elefanta, um sardão e uma sardanisca, um ornitorrinco e uma ornitorrinca, uma amiba, uma multidão de pequenas e grandes coisas a dois e umas a um. Os que estavam agora a sair eram os que tinham aceite o convite do homem, os que o recusaram tinham desaparecido da face da terra. Há momentos.

O homem que se chamava Noé, demorara cento e vinte anos a fazer aquele barco. Chovera quarenta dias, cento e cinquenta ficara a terra inundada. Depois Deus chamou um vento forte para secar a terra. Demorou também mais de um mês para secar. Noé então enviou um corvo e uma pomba como batedores do estado do mundo. A pomba regressou com um ramo de oliveira. Noé percebeu que era tempo de recomeçar. “Crescei e multiplicai-vos”. O mundo estava puro outra vez. Não ia durar muito assim.

(Agradeçamos ao bispo James Usser ter feito estes Annals of the World , para nosso sustento cronológico.)

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EARLY MORNING BLOGS 175

La Templanza, Adorno Para La Garganta Más Precioso Que Las Perlas De Mayor Valor


Esta concha que ves presuntuosa,
por quien blasona el mar índico y moro,
que en un bostezo concibió un tesoro
del sol y el cielo, a quien se miente esposa;

esta pequeña perla y ambiciosa,
que junta su soberbia con el oro,
es defecto del nácar, no decoro,
y mendiga beldad, aunque preciosa.

Bastaba que la gula el mar pescara,
sin que avaricia en él tendiera redes
con que la vanidad alimentara.

Floris, mejor con la templanza puedes
adornar tu garganta, que con rara
perdición rica, que del Ponto heredes.


(Francisco de Quevedo)

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VER A NOITE

A Lua com um halo perfeito. Para os que olham a noite, um pequeno prazer geométrico. O mundo está nos seus eixos.

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4.4.04


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: SATURNO



"Enquanto os rovers andam por Marte à procura de água, a sonda Cassini continua a sua aproximação discreta a Saturno. E as imagens que chegam até nós são espectaculares. No seguinte site , pode ver-se a última das imagens. Além do planeta são visíveis três luas. À esquerda mesmo debaixo dos anéis vê-se Mimas, mais abaixo é visível Dione e à direita aparece Encélado. A imagem foi tirada no início de Março quando a nave estava a 56.4 milhões de km do planeta. As três luas surgem muito pequeninas no ecrã do computador, convém limpar o pó para se verem bem. "

(José Matos)

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Jim Dine

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POEIRA DE 4 DE ABRIL

Hoje, há duzentos e dez anos, 15 de Germinal do ano II, foram guilhotinados Pierre Dillon, como “brigand de la Vendée”, Jean François d’Arche , “ex-noble”, Michel Lacroix, desertor, os irmãos Louis, Nicolas e Michel, tecelões, como “sediciosos”, os “contra-revolucionários” de Tirpied, cantão de Avranches, um carpinteiro, um trabalhador rural, um “domestique du curé”, entre outros; os marselhenses Padre Barthelemi Vian, um proprietário, um “commis des domaines nationaux”, entre outros; uns “federalistas” do departamento das Bouches du Rhône; etc., etc. Este "etc." é grande. A Revolução continua.

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EARLY MORNING BLOGS 174

Morning in the Burned House


In the burned house I am eating breakfast.
You understand: there is no house, there is no breakfast,
yet here I am.

The spoon which was melted scrapes against
the bowl which was melted also.
No one else is around.

Where have they gone to, brother and sister,
mother and father? Off along the shore,
perhaps. Their clothes are still on the hangers,

their dishes piled beside the sink,
which is beside the woodstove
with its grate and sooty kettle,

every detail clear,
tin cup and rippled mirror.
The day is bright and songless,

the lake is blue, the forest watchful.
In the east a bank of cloud
rises up silently like dark bread.

I can see the swirls in the oilcloth,
I can see the flaws in the glass,
those flares where the sun hits them.

I can't see my own arms and legs
or know if this is a trap or blessing,
finding myself back here, where everything

in this house has long been over,
kettle and mirror, spoon and bowl,
including my own body,

including the body I had then,
including the body I have now
as I sit at this morning table, alone and happy,

bare child's feet on the scorched floorboards
(I can almost see)
in my burning clothes, the thin green shorts

and grubby yellow T-shirt
holding my cindery, non-existent,
radiant flesh. Incandescent.


(Margaret Atwood)

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3.4.04


TORTURAS DA PIDE A MULHERES

Numa nota publicada em 25 de Janeiro de 2004 no Abrupto e nos Estudos sobre o Comunismo, publiquei esta crítica:

Num artigo de hoje do Público São José Almeida escreve o seguinte sobre as torturas utilizadas pela PIDE:

“Os métodos [de tortura] usados passavam, por exemplo, por queimar os presos com cigarros. Era também usual interrogar os presos despidos, sobretudo quando se tratava de mulheres.”

Nenhuma destas coisas é verdade, a não ser excepcionalmente. A PIDE torturava e torturava por sistema, não é isso que está em causa. Mas não utilizava queimaduras que deixavam marcas e muito menos despia as mulheres “usualmente”. Há um ou outro relato , muito raro, de queimaduras de cigarro, e ,a não ser num caso de mulheres presas do Couço em que humilhações directas de carácter sexual foram utilizadas, desconhecem-se testemunhos nesse sentido. A PIDE insultava as “companheiras” de tudo quanto havia, mas não as despia.
Afirmar isto é não compreender de todo os quadros de mentalidade que presidiam ao regime A lei não chegava à PIDE, como os PIDEs se gabavam, mas chegava a mentalidade e a “moral” sexual (ou a falta dela). É completamente inverosímil o que se diz no artigo.”


Esta nota motivou uma reacção indignada de São José Almeida e de outros jornalistas do Público no Glória Fácil, reafirmando a veracidade e o fundamento do que se escrevera no artigo. Entendi nada dizer porque todas as pessoas que conhecem a história da repressão em Portugal sabem do completo infundado das afirmações de São José Almeida e não valia a pena qualquer comentário pelo que era uma manifestação de ignorância solidária.

Agora, no mesmo jornal, Irene Pimentel , que se prepara para terminar o estudo mais completo sobre a PIDE, vem dizer exactamente o mesmo. Há apenas um caso conhecido e nenhuma prática "habitual" como dissera São José Almeida:

Nos anos 60, a ideia da emancipação das mulheres também chega à PIDE e começaram as torturas às mulheres. As do Couço foram as primeiras", conta Irene Pimentel.. (…) A historiadora apenas tem conhecimento de um caso de tortura sexual a uma mulher. "É um caso conhecido, foi Conceição Matos, que foi submetida à tortura da estátua, estando menstruada, obrigada a despir-se e a limpar-se com a roupa, diante dos agente. Entre eles estava uma mulher, a célebre agente Madalena, que tinha fama de muito violenta com os presos".

Ficava bem, até pelo tom habitual de arrogância moral que foi usado, que se reconhecesse o erro.

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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

Uma Aurora Borealis em Eau Claire nos EUA, enviada por Penélope que "desfaz de noite, o que faz de dia...."



"Sobre as questões esquerda/direita, nomeadamente sobre a moderna ascensão dos partidos extremistas, à esquerda e à direita, lembrei-me de ter lido num jornal espanhol (El Pais?) um cronista que fazia uma interessante analogia com o futebol: antes os jogadores preferiam conduzir a bola até à área do adversário pelo centro do campo, agora a estratégia é ir pelos extremos. Uma nova tendência que, segundo ele, surgiu primeiro no futebol e depois na politica."

(Sérgio Pinto)

"As imagens são de alguma forma mais chocantes do que as do 11 de Setembro. Porque não é uma mortandade à distância, sob a queda de aviões ou de edifícios. Há a intervenção directa de pessoas, no contacto com os cadáveres, cavando um fosso cultural maior do que tudo o resto. Mais do que pelo regozijo primal pela morte, acima de tudo repele o total desrespeito pelos mortos, o macabro brincar com os corpos, o horror da sua exposição pública. A diferente forma de encarar essa realidade torna aqueles iraquianos menos humanos os nossos olhos ocidentais: perpetua as difuldades de compreensão e impede a empatia."

(Artur Furtado)

"Sobre Saramago quero esclarecer que tive, desde que me lembro, uma posição mais visceral do que racional: não li e não gosto. Só que com o tempo o visceral vai diminuindo e o racional consolidando-se, mas o resultado mantém-se inalterado: não li e não gosto. Se antes eu acreditava que não iria morrer sem ler o “Memorial do Convento” que até iria gostar, cada vez mais me apetece não ler…
Saramago falou e Portugal inteiro parou e escutou. Com a sua presumida e agora pomposa (desde o Nobel) “selfconsciousness” e atordoado com a sua lucidez contestatária vem glosar as vantagens do voto em branco. Que ele o faça, é inteiramente legítimo e a democracia que eu defendo dá-lhe esse espaço e esse direito. Que seja ouvido como um iluminado profeta (eu fico com a sensação que o Rei Vai Nu), que a televisão e a imprensa, e até os blogues (Causa Nossa) lhe dêem dimensão de acontecimento de Estado já contesto. Se de cada vez que um escritor, de mérito igual ou superior ao de Saramago, editasse um livro, Portugal parasse, não se fazia nada no País.
"

(Joana Pereira de Castro)

"Li ontem esta passagem "Do we have any right to know the painful details of Eliot´s marital problems just because he is famous and dead? Is such information necessary or even relevant to a propoer reading of his poetry? These are fascinating and intricate questions" Eu pensei nisso ao ler o que Martin Amis divulgou sobre o pai na autobiografia que publicou recentemente. Nessa altura senti-me incomodada ao aprender sobre os problemas que Kingsley Amis tinha em satisfazer sexualmente a segunda mulher. Também foi uma revelação saber sobre as suas fobias extremas, que por exemplo não conseguia estar sózinho em nenhum lugar. Imagino que o Martin se deve ter posto no lugar do pai e deve ter sabido que o pai não haveria de gostar que estas coisas se soubessem. Mas mesmo assim foi para a frente, desculpando-se que é a prática comum. É uma prática errada e imoral mas como toda a gente faz ninguém questiona. "

(MCP)

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POEIRA DE 3 DE ABRIL

Hoje, há oito anos, um grupo de agentes do FBI e da polícia local assaltaram uma remota cabana no estado de Montana. Lá dentro estava Theodore Kaczynski Jr, o “Unabomber”, uma das faces do terrorismo contemporâneo, tão característico das suas tendências como a Al Qaeda. Reproduzo aqui o texto “Espelhos cruéis” que então publiquei, e que está incluído no livro Desesperada Esperança.

“Às vezes há espelhos cruéis. Em Kaczynski, o Unabomber, autor de três mortes e vinte e seis feridos com o envio de cartas bombas, algumas das coisas habitualmente escondidas no pensamento banal da esquerda estão cruelmente à vista. Não se compreende por isso que ninguém se interesse por ele e pelo seu destino. Ele que é a versão da esquerda de uma tradição clássica de terrorismo político, que encontra em Tim Mc Veigh, o bombista das milícias que fez ir pelos ares um edifício municipal, matando uma pequena multidão, o seu contraponto à direita.

Falei em “pensamento banal” já para me prevenir de alguma generalização abusiva, mas é muito por amabilidade, porque é tão “banal” como “essencial”. Banal aqui também quer dizer “comum”, que todos têm. O que Kaczynski fez, como o fez e porque o fez, tem uma profunda tradição nas raízes do terrorismo político, como instrumento de engenharia social, e esta tradição é mais constitutiva da esquerda do que se possa imaginar, e, para alguns, desejar .

Há em Kaczynski aquilo que, de há duzentos anos para cá, se pode denominar a determinação terrorista, a decisão sem hesitação em punir os males sociais como instrumento de exemplo e de alarme, ou de pura vingança e de medo, em nome de objectivos mais altos e puros de regeneração social. Os intelectuais são excelentes para estes objectivos, porque têm aquela dose de abstracção que faz esquecer os homens concretos em nome das construções ideais feitas em nome da utopia. Numa das suas últimas cartas a um grupo radical ecologista que se opunha ao corte de madeiras, Kaczynski anunciava-se dizendo que ele (no plural majestático do “nós”) fora o autor do assassinato do presidente da Califórnia Forestry Association. E afirmava que para ele a “Terra está primeiro”, a vida dos homens certamente que depois. A utopia tem as costas largas, até porque a “Terra” pesa muito .

Kaczynski é um intelectual acima da média, consistente e fanático, com aquela singularidade de propósito, sem desvios nem distracções, que permite criar uma obra. A de Kaczynski, para além do Manifesto anti-tecnológico, que, à força de ameaças, conseguiu publicar no Washington Post e no New York Times , eram as pequenas encomendas bomba contra cientistas, executivos de companhias de aviação, de computadores, e de serração de madeiras . O Manifesto ficará na história dos textos revolucionários e o seu sucesso no Internet é revelador da sua pertença a uma tradição consistente do pensamento anti-tecnológico americano. Mas os escritos de Kaczynski, em particular o seu diário descoberto na cabana em que vivia, são, no seu tom cruel e obsessivo, uma actualização de ideias muito antigas. Ouça-se o seu diário em 29 de Dezembro de 1979 : “nalgumas das minhas notas mencionei um plano de vingança contra a sociedade. O plano era destruir um avião em pleno voo. No fim do Verão, princípio do Outono, construí um engenho que me ficou caro porque tive que ir a Gr. Falls para comprar os materiais, incluindo um barómetro e muitos cartuchos para a pólvora “ … E continua por aí adiante com os detalhes dos materiais e do seu custo, com aquela mesma meticulosidade com que uma criança monta uma construção do Lego, ou um burocrata nazi calcula o custo per capita dos fornos crematórios .

Onde é que eu já ouvi isto ? No Catecismo Revolucionário de Netchaiev, elogiado por Bakunine; no anarquista do Agente Secreto de Conrad , empacotado em dinamite, pronto a explodir à primeira suspeita da polícia; no célebre diálogo de Sade junto de um vulcão em que se compara a capacidade de destruição da natureza (vulcões, terramotos, tempestades) com o poder das bombas que um químico pode construir. Kaczynski faz aqui o papel do químico anti-tecnológico, construindo as suas bombas segundo o príncipio do small is beautiful , cuidadosamente executadas com peças de madeira trabalhada, cujos estilhaços destruíram vários corpos. Porque, ninguém tenha ilusões, as bombas do Unabomber eram para matar .

Imagino alguns dos meus leitores a encolherem os ombros e a dizerem: mas o que é que a esquerda tem a ver com isto? Não condenou sempre a esquerda a violência “separada” da “luta de massas”? Não. O que na tradição da esquerda se faz é escolher o “bom” terrorismo, e rejeitar o “mau” terrorismo conforme as épocas, as conveniências, os mandantes e os executantes. Nunca à esquerda se estabeleceu uma verdadeira distinção de princípio contra o terror, nem tal se podia fazer, dada a visão da relação do homem “naturalmente bom” com uma sociedade “naturalmente má “. Os marxistas acham que a sua condenação do terrorismo individual e que a sua condição de aceitação apenas da associação do terror às “massas” e aos movimentos revolucionários lhes basta. Não basta, nem aliás na história estas distinções alguma vez tiveram verdadeiro sentido. Os partidos comunistas condenavam essencialmente o terrorismo que não controlavam , ou aquele que estrategicamente não lhes seguia os timings e os alvos. Quando “Carlos” se passeava pela Hungria, pela RDA e pela Roménia, e intervalava para ir a Damasco ou ao Yemen, e não ao contrário, os pacíficos burocratas da Stasi, do KGB ou da Securitate, com quem ele brindava nas festas de família, pediam-lhe só que não estragasse as visitas de estado de Brejnev. E ele não estragava.

Só que Kaczynski ainda era do tempo da pólvora e não do Semtex. Mas não é, a seu modo, um homem de “princípios”, de uma fé inabalável a mesma fé que a nossa esquerda ( e direita ) radical chic admira no dr. Cunhal ou em Che Guevara? Qual é a verdadeira diferença entre Kaczynski a matar cientistas por Express Mail da sua cabana do Montana e o Che a matar uns desgraçados soldados bolivianos, tão camponeses como os camponeses que ele queria trazer para a “sua” revolução? Ou de Kaczynski com o dr. Abigael Guzmán, o camarada Gonzalo, do Sendero Luminoso, ou com o comandante Marcos, do Exército de Libertação Zapatista, tão versado na Internet e no marketing da imagem revolucionária e da atracção sado-masoquista pela máscara? As “massas”? Mas que “massas”? Os “ideais”? Mas o que não falta a Kaczynski são “ideais”. A luta por uma sociedade “melhor”? Mas pensam que o Unabomber não está convencido de que destruir os malefícios da aviação e dos computadores não nos faz viver “melhor”?

Não, não é por aí. Porque o que une estes homens todos é uma mesma identidade obsessiva, contra a história, contra os factos, contra a realidade, contra os homens concretos, pela abstracção de uma utopia, com as melhores das intenções. Que só eles acham que o são. E de que o Inferno está cheio."

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OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: OLHOS QUE PASSEIAM ÁRDUOS



O “Espírito” atravessou esta planície pedregosa. Começa a ficar cansado, mas ainda tem umas colinas longínquas para onde se dirigir. Não se vêem nesta fotografia porque estão à sua frente e o olhar é para trás, para a travessia feita. Caminha, pois, pequeno “Espírito” para onde é mais alto.

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EARLY MORNING BLOGS 173

Esta carta matinal de Juanico, dizendo "nós por cá todos bem", como em todas as guerras, todos os soldados fazem.


Llegué, señora tía, a la Mamora,
Donde entre nieblas vi la otra mañana,
Desde el seguro de una partesana,
Confusa multitud de gente mora.

Pluma acudiendo va tremoladora
Andaluza, extremeña y castellana,
Pidiendo, si vitela no mongana,
Cualque fresco rumor de cantimplora.

Allanó alguno la enemiga tierra
Echándose a dormir; otro soldado,
Gastador vigilante, con su pico

Biscocho labra. Al fin, en esta guerra
No vi más fuerte, sino el levantado.
De la Mamora. Hoy miércoles. Juanico.



(Luis de Góngora y Argote)


*

Bom dia !

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VER A NOITE

Noite de luar húmido, humidade baixa, silenciosa, à volta das novas folhas das árvores.

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2.4.04


POEIRA DE 2 DE ABRIL

Hoje, há cinquenta e sete anos, Simone de Beauvoir atravessa o sul dos EUA num autocarro expresso. Partiu às nove da manhã para chegar a Jacksonville, às duas da madrugada. Sentou-se na cadeira, reclinou-se, verificou que havia uma pequena lâmpada para ler à noite. Vendiam-se Coca Colas e sandes no interior do autocarro. Mais confortável do que os autocarros em França.

Tudo bem, menos a terra que atravessava – o Sul racista , a terra da “grande tragédia” que a perseguia como uma obsessão. Os brancos ressentidos pela beleza dos negros. Os brancos que ali perdiam toda a “gentileza americana”.

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Peter Graham, Wandering Shadows

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1.4.04


EARLY MORNING BLOGS 172

Reticências

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na ação.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...


(Álvaro de Campos)

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© José Pacheco Pereira
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